segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Arredação Final

Marcelo Mário de Melo

Preparei toda a programação da minha futura Festa Funeral. Para quem não foi muito organizado durante a vida, pega bem dar uma compensada na preparação pós-morte. Sempre gostei de fazer festa de aniversário - uma grande oportunidade de reencontrar amigos e ganhar presentes. E rever amigos e ganhar presentes são duas coisas que deixam a gente com os olhos acesos e a cauda do coração balançando.

Há anos atrás já havia tomado esta providência, mas um vírus no computador apagou tudo. Retomo-a agora, influenciado pelo comparecimento a algumas cerimônias fúnebres. Neste ano de 2005, com 61 anos de idade, tenho a certeza de que ainda vou viver umas duas décadas e meia, ou três. Mas o fato de falar de morte atraiu uma atmosfera de morbidez. Estou me vendo no caixão, os parentes e amigos mais íntimos cumprindo com algum embaraço a programação que deixo pronta. E nessa visão já começo a sair do roteiro, pois deverei ser cremado e não haverá nenhum caixão em cena.

Disse que tenho a certeza de que vou ultrapassar os 80. Mas isto não é lá muito verdadeiro. Porque, sendo muito distraído, tenho também um medo-quase-certeza de que vou morrer de distração. Viajando nessa hipótese, fiz até o mote: Eu vou morrer distraído/olhando coisa bonita. O mote nasceu quando, um dia, ia atravessar a rua, avistei uma mulher bonita, desses tipos mulher-monumento, que levam os olhos a arrastar o pescoço. Quando arrastaram, meti a cabeça num orelhão. A mulher viu a cena e saiu rindo. Isto faz parte das minhas Histórias Ingloriosas.
Em momentos de distração, andando de bicicleta ou a pé, carros já deram freadas pesadas em cima de mim. Nos anos 1980 inventei de comprar uma moto e um dos meus amigos iniciou uma cruzada contrária entre os mais próximos, chegando até a falar com a minha mãe. “Num carro você perde um pára-lama; numa moto você perde uma perna”, foi seu convincente argumento final. Continuei pedalando e me habilitei assim a não morrer por moto. Pelo menos, sendo eu o motorista.

O fato é que sempre acho que posso morrer de distração. E, se for o caso, prefiro que seja olhando coisa bonita. O mote tem que ficar escrito na minha lápide. E novamente vou saindo da programação, porque vou ser cremado e não haverá lápide nenhuma. Mas há também a hipótese não descartável de morrer sem distração nenhuma e a curto prazo, vítima de algum assaltante ocasional e nada casual, nesses tempos de crescente marginalização pós-modernosa.
Outra coisa me preocupa. Se eu não morrer de distração nem de assalto, se não pegar uma dessas doenças tenebrosas, que fazem liquidação em curto prazo, e se chegar aos 99 anos pretendidos, a minha festa funeral poderá ser um grande fiasco por falta de público, pois muitos dos meus amigos mais chegados deverão ter sido deletados bem antes de mim. Uma amiga, dez anos mais nova do que eu, procura me tranqüilizar, dizendo que garante na festa uma representação expressiva de gatões e gatinhas de 89 anos. Bem, seja lá o que Deus quiser.

E por falar em Deus, esclareço que decidi deixar uma programação funeral amarrada, porque quero ter uma cerimônia fúnebre de ateu, sem nenhum componente religioso centralizando a festa. Mas é claro que os meus amigos religiosos, se quiserem, podem dar uma rezadinha, porque não sou um ateu rançoso e não vou fazer proibições e constranger ninguém na despedida final, sem mais a possibilidade de um posterior pedido de desculpas.

Quando adolescente, me impressionou muito uma carta fúnebre deixada pelo desembargador comunista Edmundo Jordão, de quem ganhei de presente uma bola de borracha, em Caruaru, no aniversário dos 7 ou 8 anos. Já morando no Recife, com 14 ou 15 anos, li num jornal a carta do Dr. Edmundo, dizendo assim: “renuncio a todas as cerimônias dos que nascem no seio da igreja”. Ele também determinou que o seu caixão ficasse fechado, sentenciando: “a morte tem o seu pudor”.

Sempre me incomodou, em mortes de ateus, as famílias providenciarem cerimônias religiosas, contrariando a descrença dos defuntos. Ora, a quem passou a vida como ateu, por que negar o direito a um ritual ateu depois de morto? Pensando nisto, decidi programar meu funeral, esperando que, além de ser cumprido à risca, seja muito animado e possa servir de referência a outros ateus no corredor da morte ou colhidos por ela.

Muitos só tomam conhecimento da morte de uma pessoa próxima, dias depois que ela ocorre. Outros, por alguma razão, não podem comparecer ao sepultamento, restando-lhes a missa de 7o dia. Considerando isto, programei para mim uma Festa Funeral de 7O Dia que, além de manter a sintonia com a tradição cristã predominante, terá um efeito de “repescagem” para os que faltarem ao primeiro evento.

Quando morrer, quero que o meu corpo seja imediatamente entregue à reciclagem para a extração do material reutilizável. Em seguida deverá seguir para a cremação. A festa final de despedida ocorrerá nas imediações do local em que serão lançadas as minhas cinzas. No Rio Capibaribe cumprirei a última função útil, como elemento fertilizante e comida de caranguejo. Aprofundando a linha mortuária do desembargador Edmundo Jordão, não haverá o tradicional velório, com o defunto encaixotado e exposto aos olhos públicos. Apenas uma caixinha com cinzas, ao lado de um buquê de rosas vermelhas, estará representando o morto, à espera do seu destino final.

Só desejo não morrer em época de chuva, porque programei uma festa ao ar livre. Talvez seja o caso de uma promessa pré-paga com São Pedro, para garantir o bom tempo.

Abraços, beijos, uma boa festa (aliás, duas boas festas) e até sempre!

Recife, 2005

Padre Romano: o Cristo e a Classe

Marcelo Mário de Melo

Romano Zufferey nasceu na região montanhosa da Suíça, em 1910, na cidade de Saint Luc, filho de um pai operário e tendo irmãos operários.Logo cedo se decidiu pelo sacerdócio e na sua terra atuou junto aos trabalhadores das minas.Vivia subindo e descendo montanhas e se acostumou com as escaladas e as alturas, como diz o jornalista Carlos Chaparro no belo livro que escreveu sobre a sua trajetória - Padre Romano – Profeta da Libertação Operária -, publicado pela Editora Hucitec. Assim ele adquiriu uma visão terra-a-terra e panorâmica das pessoas e das coisas, não se perdendo em detalhes e tropeços, pois o importante era a caminhada.

Chegou ao Brasil em 1962, como assistente da Ação Católica Operária – ACO, hoje Movimento dos Trabalhadores Cristãos. E por estas bandas nordestinas foi o primeiro padre a andar sem batina, depois do Concílio Vaticano II. O arcebispo lhe permitiu o paletó com a gola dura. Mas logo ele dispensou os acessórios e assumiu a manga de camisa.

Um dia escandalizou numa reunião, dizendo que era mais cristão ir à reunião do sindicato do que ir à missa. E escandalizou-se ao ver a igreja se inclinar para votar no usineiro João Cleofas de Oliveira, nas eleições para governador de Pernambuco, e não em Miguel Arraes, apoiado pelos comunistas e a esquerda. “Trata-se apenas hoje, para os cristãos, de colaborar na promoção da Justiça com aqueles que estão dispostos a realiza-la. A Justiça não é menos Justiça quando é realizada pela esquerda” – escreveu na época.

Romano rejeitava a religiosidade disseminado por patrões católicos, segundo escreveu nos seus diários em outubro de 1963. “A atividade religiosa dos patrões compromete a Igreja com o capitalismo e todas as suas injustiças. A presença da Igreja na fábrica deve ser assegurada não pelos patrões e pelos padres, mas por militantes autenticamente operários e autenticamente cristãos. Militantes que assegurem a presença da Igreja, não pregando, mas vivendo o testemunho do espírito de Jesus Cristo, em toda a sua vida entregue ao serviço dos companheiros”.

Toda a sua atuação foi no sentido de quebrar as carapaças da fé desligada da vida e trazer para o dia-a-dia o Cristo vivo, comprometido com a luta dos oprimidos e a vida com dignidade. Cristo para ele era um companheiro operário da libertação. “O que corresponde nos nossos dias ao milagre da multiplicação dos pães – dizia – é a socialização dos meios de produção.” Socialista na prédica e na prática, insistia no posicionamento de classe, dizendo que limitar-se ao “popular” era diluir a existência e a luta da classe trabalhadora. No dia 1o de Maio e no dia de Pentecostes, sempre vestia uma camisa vermelha. O Cristo e a classe eram as suas referências.

Romano achava que o movimento da Ação Católica Operária não deveria substituir ou se contrapor às representações autônomas da classe trabalhadora, mas estimular os militantes a assumir as suas responsabilidades na sociedade, segundo suas inclinações e sua consciência, dando o testemunho a partir do Ver, Julgar e Agir, método de análise herdado da Juventude Operária Católica. Um método que ele procurou enriquecer com um conteúdo socialista, recorrendo à sua vivência proletária e às contribuições da análise política, não poucas vezes, realizada com a colaboração de companheiros que não eram militantes do movimento, ou que não eram cristãos.

O Padre Romano se relacionava com as pessoas, certo de que o Espírito Santo agia, também, através das ações daqueles que não acreditavam nele, segundo me disse um dia. Respondi-lhe que isto era uma apropriação indébita dos direitos autorais dos ateus. Ele riu. Um dia, cheguei na sede da ACO e lhe disse que tinha lido do poeta Sergio Lima um bem humorado poeminha ateu. Ele me pediu para dizer e o fiz: “Acho que Deus é materialista. /Ele não acredita/que eu existo”. Romano riu gostosamente, dizendo com o sotaque francês: “muito engraçado, muito engraçado”. A dimensão do humor e o riso largo também faziam parte do seu jeito de ser, acompanhando o vigoroso aperto de mão e os olhos vivos e curtidores, ao levantar a taça e fazer brindes, dizendo: salut!

Em 1964 Romano foi detido na Secretaria de Segurança, junto a militantes da ACO. Em 1977 respondeu a um processo de expulsão que teve repercussão nacional e internacional e terminou sendo arquivado. Contou com o firme apoio de D. Helder Câmara, que embora não tivesse as posições políticas da ACO, claramente de esquerda, socialista e comprometida “com todas as lutas e formas de luta” que os trabalhadores assumissem ou viessem a assumir nas suas entidades autônomas, respeitou a sua autonomia e lhe prestou solidariedade, sempre que as malhas repressivas a ameaçaram.

“Deixemos ao fermento o tempo necessário para penetrar a massa, e ao grão, o tempo de morrer e fazer brotar a planta com doçura”- escreveu o Padre Romano. Ele morreu em fevereiro de 1985, aos 72 anos de idade, atacado por insuficiência respiratória, e teve realizado o seu desejo de ser sepultado em terra brasileira.

Na missa de 7o dia, D. Helder disse: “Romano precisa ser continuado. Nós não podemos ficar só na saudade. A saudade verdadeira é aquela que nos impulsionará para não deixar que caia o esforço da classe operária.(...) Ao comemorarmos a memória do Padre Romano, nós, a Igreja do Cristo do Nordeste, como também a Igreja do Cristo do Brasil, assumimos novamente o compromisso de não abandonar a classe trabalhadora, de sofrer com ela o que for preciso. De nos alegrarmos com suas vitórias, mas, sobretudo, de estarmos juntos, unidos, irmãos, nas horas difíceis, nas lutas que não haverão de faltar.”

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

domingo, 21 de setembro de 2008

Sonho, Saga e Amor de Apolônio de Carvalho

Marcelo Mário de Melo

No dia 29 de outubro Apolônio de Carvalho, 85 anos, autor do livro de memória “Vale a Pena Sonhar”, editado pela Rocco, estará participando de festa de lançamento na livraria Quinta do Livro. Com prefácio de Antônio Cândido e pós-facio de Silvana Goulart, o livro traça uma trajetória militante que começa nos anos 30, enfrentando a ditadura Vargas, passa pela Espanha, na luta dos republicanos contra o franquismo, chega à França, na resistência ao nazi-fascismo, retoma ao Brasil e continua a saga até os dias atuais.

Personagem internacional, Apolônio de Carvalho, oficial de artilahria, teve a patente cassada em 1936 e foi preso, convivendo na prisão com figuras como Graciliano Ramos e Apparyccio Torelly, o famoso Barão de Itraré. Libertado, sai do país e se torna comandante militar na guerra civil espanhola, lutando ao lado da república contra as tropas franquistas. Na resistência francesa, combatendo o nazi-fascismo, foi o responsável militar pela região sudeste e comandante da zona sul, sediada em Lyon. Comandou a libertação de Carmaux e Albi e Toulouse.

No Brasil, Apolônio foi presidente da União da Juventude Comunista, cassada em 1947, antecipando a cassação do PCB. Quando houve o golpe militar de 1964, Apolônio compunha o Comitê Central do PCB. Integrando a chamada Corrente Revolucionária do partido, participou da fundação do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, em 1968, sendo o seu primeiro secretário geral.
Em 1970, aos 58 anos, foi preso, resistiu à prisão e teve um comportamento heróico ante às torturas, desmoralizando os torturadores e impondo o respeito nos porões da repressão. Seis meses depois de preso, Apolônio de Carvalho foi trocado, junto a outros presos políticos, pelo embaixador alemão, seqüestrado por uma organização revolucionária brasileira. Seguiu para a Argélia e, daí, radicou-se na França.Retornando ao Brasil em 1979, Apolônio participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e foi eleito seu vice-presidente. Por recomendação médica, afastou-se da direção do PT em 1985.

É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.

As memórias de Apolônio de Carvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitui uma difícil eqüidistância entre o tom bombástico e apologético das “testemunhasde Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.

Amor nas trincheiras - Na introdução do seu livro, Apolônio diz que não agradece a Renné, sua companheira, porque o livro é, também, a sua história. Eles se conheceram em 1942. Pertencendo a uma família de comunistas franceses, Rennée já tinha uma irmã e uma tia na prisão. Com atuação na Juventude Comunista, integrou-se na resistência ao nazi-fascismo, conhecendo Apolônio. Os dois passaram a atuar juntos. Ele, como comandante militar. Ela, participando de operações e no transporte de explosivos.
Entre tocaias e tiros o amor floresceu e o casal se firmou, escrevendo uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular. O primeiro filho, René-Louis, nasceu na França em dezembro de 1944, ainda em tempo de refrega e de fogo. O segundo, Raul, nasceu no Brasil em fevereiro de 1947. E logo depois a família teve de viver na clandestinidade, com a cassação do registro legal do PCB e a perseguição aos comunistas.

A parceria revolucionária com a mulher se estendeu aos dois filhos, que passaram a atuar como militantes e terminaram presos, em fevereiro de 1970, durante a ditadura militar. Renné-Louis foi trocado, em janeiro de 1971, pelo embaixador suíço seqüestrado. Raul foi libertado em setembro de 1973.

Rennée e Apolônio Vivem no Rio e estarão juntos no lançamento, em Recife, do “Vale a Pena Sonhar”. Para Apolônio será um retorno, pois ele já esteve aqui, antes de 1964, ministrando cursos de marxismo. Como dirigente do PT, também participou de reuniões nesta capital, na década de 80.
Press Release, Recife, 1977

Os Roteiros de Apolônio de Carvalho

Marcelo Mário de Melo

O livro de memórias de Apolônio de Carvalho, Vale a Pena Sonhar, representando mais uma contribuição à avaliação da prática da esquerda de inspiração socialista, trás o interesse especial da sua abrangência histórico-política, pois o autor, personagem central da narrativa, não teve uma atuação limitada ao território brasileiro.
Tenente em 1936, Apolônio se liga à Aliança Nacional Libertadora, é preso e tem a patente casada. Depois de cerca de um ano entre a Casa de Detenção e a Casa de Correção, no Rio de Janeiro, sendo companheiro de cela de Graciliano Ramos e Apparicio Torelly, o Barão de Itaraé, é libertado e segue para Espanha, integrando-se nas Brigadas Internacionais, que ao lado da república, combatiam as tropas franquistas. Como oficial de artilharia, Apolônio exercer funções de comando até a derrota final das forças republicanas.
Num momento seguinte ele foge de um campo de refugiados, na França, e se integra à resistência contra o nazi-fascismo, destacando-se como responsável militar da região sudeste e comandante da zona sul. Sob seu comando se deram as libertações de Carmaux e Albi e Toulousse.

No Brasil Apolônio foi presidente da União da Juventude Comunsita, loogo fechada, seguindo-se a cassação do registro do PC, EM 1947. Vive um novo ciclo de clandestinidade,passando à semilegalida, iniciada na “era JK” e encerrada com o bolpe de 1964. Nos idos do golpe ele é membro do comitê central do PC, articula-se na chamada “Corrente Revolucionária” do partido, participa da fundação do PCBR – Prtido Comunista Brasileiro Revolucionário e é eleito o seu secretário-geral, em 1968.
Em 1970, aos 58 anos, é preso, resiste à prisão e às torturas, impondo o respeito nos porões da repressão. Meses depois, juntamente com um grupo de presos políticos, é trocado pelo embaixador alemão seqüestrado por uma organização revolucionária, seguindo num vôo para a Argélia e se transferindo para a França. Na volta ao exílio, Apolônio se incorpora á formação do Partido dos Trabalhadores e é eleito seu vice-presidente. Em 1985, por recomendação médica, afasta-se da direção do PT.

É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.

O Vale a Pena Sonhar sugere vários roteiros. Um deles é o da história de amor entre Apolônio e Rennée, sua companheira, pertencente a uma família de comunistas franceses, atuante na juventude comunista e na resistência ao nazi-fascismo. Eles se conheceram dm 1942, connstruiram um amor nas trincheiras, firmaram-se como casal, tiveram o primeiro filho durante a segunda guerra mundial e escreveram uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular.

As memórias de Apolônio de Crvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitue uma difícil linha divisória entre o tom bombástico e apologético das “testemunhasde Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.

Diário de Pernambuco, Recife, 1997

A Hora e a Vez da Economia da Cultura

Marcelo Mário de Melo

Os estudos sobre a economia da cultura tiveram início nos Estados Unidos nos anos 1960. Na década de 1970 a Unesco convocou os seus membros a produzirem estatísticas sobre cultura e a França foi um dos primeiros países a tomar a iniciativa. No Brasil, o primeiro grande estudo sobre o assunto surgiu com Celso Furtado á frente do ministério da Cultura, que encomendou pesquisa ao Instituto João Pinheiro dando conta do peso da cultura no Produto Interno Bruto e na balança comercial.

Na pré-história dos estudos e dos debates sobre a economia da cultura no Brasil, vale ressaltar a cobrança por eles nos encontros e documentos culturais de Pernambuco a partir de 1985, ao lado da reivindicação do Cadastro Cultural do Estado. Nas perdas e ganhos assinale-se, na gestão de Nailton Santos á frente da Sudene, durante do Gpoverno Sarney, no ano de 1977. a constituição do Grupo de Política Cultural - GPC, coordenado por Janice Japiassu, que promoveu a realização do I Encontro Nordestino de Política Cultural, em cujas resoluções se colocava a necessidade dos estudos de economia da cultura. Com a eleição de Collor, o GPC foi deletado e tudo voltou a estaca zero.

No Governo de Miguel Arraes (1989-90), com Tarcísio Pereira á frente da Fundarpe, o poeta-sociólogo Alberto da Cunha Melo coordenou a pesquisa de campo do projeto-piloto do Cadastro Cultural de Pernambuco no município de Caruaru, extensiva á área rural e incluindo um item sobre a participação da atividade cultural na renda familiar, sendo cadastrados em torno de 1.400 produtores culturais da cidade e dos sítios. Esse trabalho foi abandonado pelo governo seguinte e nunca mais sendo retomado, inclusive, nas duas posteriores gestões de Arraes. Na década de 90 também foram realizados o Censo Cultural do Ceará (1992), o Guia da Produção Cultural da Cidade do Rio de Janeiro (1993) e o Guia Cultural da Bahia (1998), indicando apenas equipamentos culturais disponíveis, calendário de eventos e lista de produtores culturais nos diversos segmentos, sem nenhuma informação de caráter ecionõmico.O Cadastro Cultural do Recife, elaborado em 2004, seguiu esse modelo.

Parcerias e produtos - Mas como planta insistente brotando no concreto, a questão da economia da cultura foi avançando no Brasil, com o estímulo das correntes internas e sob a influencia decisiva dos encontros e resoluções da Unesco, que colocaram em pauta a questão do desenvolvimento cultural e a necessidade de se elaborarem os indicadores de desenvolvimento relacionados á cultura. O passo importante neste sentido foi a realização em agosto de 2002, na Fundação Joaquim Nabuco, do Seminário Internacional sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento – Uma base de Dados para a Cultura.

O documento A Imaginação a Serviço do Brasil – Programa de Políticas Públicas de Cultura, do qual sou signatário, que serviu de inspiração ao Governo Lula e é assumidamente marcado pelo pelas diretrizes constantes do Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da Unesco, possui no arrazoado um item denominado Cultura como ativo econômico. E nas propostas, no título Economia da Cultura, está inscrito: “implementar, juntamente com o IBGE, IPEA, secretarias estaduais e municipais de cultura, instituições culturais, associações e sindicatos, uma Rede de Informações Culturais voltadas para a produção sistemática de dados culturais (censo cultural, dados estatísticos e constituição de um banco de dados integrado que de suporte á ação do Estado, da sociedade e do mercado”.

A primeira conseqüência desse alinhamento político-cultural foi a assinatura, EM 2004, do Convenio entre o Ministério da Cultura, o IBGE e o IPEA, retomando o trabalho do Seminário de 2002, inclusive com a mesma equipe, para gerar informações relacionadas ao setor cultural, construir indicadores, culturais, fomentar estudos, pesquisas e publicações. O resultado concreto foi o Sistema de Informações e Indicadores Culturais, publicado em finais de 2006, que está disponível nos sites do IBGE e do Ministério da Cultura, podendo também ser adquirido em CD-ROOM

O que é a coisa - As informações culturais foram construídas a partir do cruzamento de dados recolhidos em pesquisas já realizadas pelo IBGE: Censo Demográfico, Amostra de Domicílios, Economia Informal, Orçamentos Familiares, Padrões de Vida, Pesquisa Mensal de Emprego, Informações Básicas Municipais, Cadastro Central de Empresas, Pesquisas Anuais Serviços, Industrial-Empresa e Industrial-Produto.

Foram estudados os segmentos culturais para os quais não há nenhuma duvida sobre o seu enquadramento no guarda-chuva da cultura, como edição de livros, jornais, revistas e periódicos; rádio, televisão, teatro, música, bibliotecas, arquivos, museus, atrimônio histórico. Compondo uma “zona cinza”, segundo declarou a pesquisadora do IBGE Cristina Pereira de Carvalho Lins, no Seminário Internacional de Economia da Cutura realizado na Fundação Joaquim Nabuco no ano passado, foram incluídas “as atividades de comércio atacadista de equipamentos de informática e de telecomunicações, atividades de processamento de dados etc, para as quais nem sempre está explícita a associação com o setor cultural”

Vale salientar a importância da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Municipal, realizada em 1999 e 2001, voltada para a identificação e a quantificação dos equipamentos culturais, considerando 17 tipos: biblioteca pública, museus, teatros ou salas de espetáculo, cinemas, clubes e associações recreativas, estádio ou ginásio poliesportivo, banda de música, orquestra, vídeo-locadora, livraria, loja de discos, CDs e fitas, shopping-center, estações de rádio AM e FM, unidades de ensino superior, geradora de TV e provedor de internet.

Além das leis de incentivo - Paralelamente ao domínio das informações e ao estabelecimento de indicadores específicos, a discussão cultural começa a sair do beco estreito das leis de incentivo e do marketing cultural. Internacionalmente se coloca em questão as potencialidades da economia criativa como fator de desenvolvimento, em relação com a sustentabilidade, e a criação de ambientes favoráveis á expressividade, á informação e á difusão da cultura. E no país se realizam inúmeros estudos e pesquisas sobre cadeias produtivas na área da cultura, merecendo destaque o trabalho de Luiz Carlos Prestes Filho sobre a música no Rio de Janeiro. Aqui em Pernambuco, no rol mais recente das perdas e ganhos, pesquisa sobre o mesmo item, coordenada pelo Centro Josué de Castro, foi interrompida por falta de recursos. Mas no contraponto, a Fundação Joaquim Nabuco realizou um Seminário Internacional sobre Economia da Cultura, cujas palestras estão disponíveis no seu site, e que vai gerar livro e DVD. E também deu início ao curso de pós-gradução em Economia da Cultura, em parceria com a UFRS.

Tudo isto vem colocar a necessidade de se reformularem as políticas culturais, que devem ser tratadas como políticas de estado. Que rompam com a visão segmentada, individualista, eventualista e marcada pelas urgências do “balcão de atendimento, a critério do arbítrio todo-poderoso dos gestores. Que incorporem a ótica das cadeias produtivas. Que estabeleçam as responsabilidades específicas do Município, do Estado e da União, a exemplo do que ocorre nas áreas da Educação e da Saúde. Que formulem qual o perfil da rede de equipamentos básicos de cultura sob a responsabilidade de cada uma das instâncias federativas. Que estabeleça planos a longo prazo para que essa rede básica seja implementada.

Embora se constatem avanços, o Brasil ainda continua sob o império das leis de incentivo e do marketing cultural, tomados como os centros da questão econômica. Sem se considerar a importância indutora do Estado no processo econômico, e não somente indutora, se considerarmos que o MEC realiza o maior programa de compra de livros didáticos (e não só didáticos) do mundo, sendo o principal comprador e sustentáculo da indústria do livro. Considere-se também que formar mercado, no que diz respeito á economia da cultua, significa formar platéias, facilitar o acesso a bens culturais, a expressividade artística das comunidades, o amadorismo e os programas de formação no segmento. O que remete para a interligação entre educação e cultura e a necessidade de manter uma rede de equipamentos culturais públicos.

Mas apesar dos novos conhecimentos estatísticos, as políticas culturais ainda continuam marcadas pelos recursos orçamentários despendidos, majoritariamente, no calendário de eventos., e não na rede de equipamentos bascos. Para checar, basta tomar como exemplo a Prefeitura mais próxima.
Publicado na revista Continente Multicultural, PE, 2007

Inversão de Prioridades

Marcelo Mário de Melo

“Resgate” chegou e nunca mais saiu da moda, passando a fazer parte dos apetrechos básicos dos ativistas da casa grande e da senzala, assim como a agenda, a caneta e o telefone celular. “Empreendedorismo”, “protagonismo”, “holístico” e “sinergia” já têm os seus lugares garantidos. Agora, “ inversão de prioridades” também procura ocupar uma cadeira central nos salões da fala, olhando para “empoderamento”, situado algumas filas atrás. Preocupado em que não se use o seu santo nome em vão, teço aqui algumas considerações sobre o sentido exato da expressão “inversão de prioridades”, temendo a sua utilização meramente retórica.

Inversão, no contexto da discussão política, significa o oposto, o contrário. Prioridade, segundo o Dicionário Aurélio, quer dizer “qualidade do que está em primeiro lugar ou do que aparece primeiro, primazia”.Dar prioridade a uma coisa é, simplesmente, fazer mais por ela e colocá-la na frente.Mas inverter prioridade significa ir além disto. É fazer muito mais, ou o contrário do que se vinha fazendo.É dar uma virada total. E como estamos tratando de uma inversão de prioridades no uso da máquina estatal e na gerência de políticas públicas, é interessante procurar decompor o conceito nas suas partes constitutivas, como se abríssemos o saco para verificar o que existe dentro. Mãos à obra, portanto.

Vamos estabelecer que, em termos de ação governamental, dar prioridade a uma coisa é dedicar a ela muito mais tempo e recursos - financeiros, materiais e humanos. A partir daí, e considerando que a prática é o critério da verdade, podemos concluir que, quem agir assim, estará fazendo inversão de prioridade, e quem não o fizer, não estará. Como se vê, a inversão de prioridades, como diretiva para uso imediato, é gulosa, radical e sem meio termo.

Para quem se sentir surpreendido e acuado por tal radicalidade, há uma opção: deslocar a inversão de prioridades do campo da ação executiva imediata para o território mais longínquo do objetivo a ser atingido. Aí então, respira-se com mais tranqüilidade o tradicional e se pode conduzir o barco, com remadas leves, para o horizonte da inversão das prioridades, a ser atingido um dia. Fica presente o risco assinalado nos versos do poeta Ângelo Monteiro: “O amanhã não é terça, não é quarta, não é quinta: é uma aurora sempre extint...

A relativização do conceito obriga a que se o veja em processo, sujeito a fases, que estabelecem marcos na trajetória.Três delas podem ser identificadas.

1 – Meação de prioridades – É quando se investe tempo, recursos materiais e humanos no novo, numa proporção de 50%. Caracteriza o conservadorismo progressista, uma vez que, embora se alarguem os investimentos no que deve ser invertido, dá-se um tratamento igualitário ao atraso e ao progresso, mantendo estacionária a gangorra.


2 – Inclinação de prioridades – É quando se aplica até 70% no novo, mantendo-se, ainda, 30% de investimentos no velho. Caracteriza o progressismo moderado, porque já se conseguiu inclinar a gangorra no sentido da inversão, mas ainda se faz ao lugar comum, percentualmente, uma significativa concessão.

3 – Inversão de Prioridades – É quando se consegue investir quase 100% no novo, encostando a gangorra no solo e deixando com as pernas penduradas no alto o pólo do atraso. Caracteriza o progressismo autêntico, radical ,literal, substantivo e, portanto, sem necessidade de adjetivos.

Para aqueles que tomam a inversão de prioridades como objetivo distante, é importante situar precisamente, no tempo, as três fases do processo – a meação, a inclinação e a inversão - , para que elas possam ser trilhadas e concluídas nos prazo pretendidos. Sem isto, pode-se cair na situação retratada na música de Chico Buarque: “ ...o tempo passou na janela e só Carolina não viu”






Lula: anseio do povo

Marcelo Mário de Melo

Em artigo publicado no Jornal do Commércio há cerca de dois anos, sob o título de “À Esquerda e em Frente”, fiz a defesa da quarta rodada com Lula nas eleições presidenciais de 2002. Na época, havia sido encampada pelo PPS, com dose elevada de carbureto, a candidatura de Ciro Gomes, já em vôo eleitoral autônomo. De lá até agora, muita água passou pela ponte. José Serra foi oficializado como candidato a presidente. Surgiu a candidatura de Antony Garotinho. O poder judiciário impôs a verticalização das alianças políticas. Foi detonada a candidatura de Roseana Sarney, levando à ruptura entre o PFL e o PSDB. E Lula passou a candidato preferencial do povo brasileiro, ultrapassando os 40% de preferência nas pesquisas e atraindo segmentos que se apresentavam resistentes.

Os dois elementos mais importantes na conjuntura política, evidentemente, foram a verticalização e a briga de família entre o PFL e o PSDB, que conseguiu ser mais atritada do que racha da esquerda. Ficaram na cabeça do povo brasileiro as imagens dos pacotes de dinheiro flagrados no escritório de Roseana e do marido Murad, com transmissão via satélite e ocupando as primeiras páginas dos jornais. Imagens que respingam na candidatura de Serra ou de qualquer outro candidato oficial, uma vez que, na consciência popular, a briga PSDB-PFL é traduzida como “briga de bandido”. Isto, associado à exaustão civil diante da dose dupla de Fernando Henrique Cardoso, favoreceu o crescimento da candidatura de Lula, alimentada, também, pela habilidade das suas intervenções e da sua propaganda televisiva.

Tem uma verticalização no meio do caminho, pedindo à esquerda que a decifre ou se devore. Não seria mais o caso de se exercitar o automatismo característico da realidade política anterior, com todos os partidos lançando, no primeiro turno, candidatos a governador e a presidente e conduzindo à parte as candidaturas proporcionais. Mas seria, mas foi, ao custo de uma drástica redução da representação de esquerda no parlamento, em todos os níveis, considerando-se os votos necessários para uma legenda eleger um deputado estadual e um federal. É só fazer as contas.

Os argumentos que sustentavam a candidatura de Ciro Gomes, emitidos pelo senador Roberto Freyre, eram de que Lula não conseguiria articular as forças de centro-esquerda, não ultrapassaria o patamar dos 30 % e, por isto, era o candidato desejado pela direita. Em síntese: uma verdadeira candidatura pé-na-cova. Mesmo há dois anos atrás, e admitindo-se a veracidade desse perfil cinzento de Lula, pintado pelos pinceis de Roberto Freyre, seria difícil admitir Ciro Gomes como alternativa. A não ser no terreno da ficção, num caso de hidroponia política. Ou nos embalos do puro marketing, afeito à fabricação de factóides. Carente de enraizamento democrático, e como não se tira sangue de tapioca, Ciro restou estacionado na linha do quebra-mar, onde se banham os garotinhos, com um olho ansioso catando apoios à direita e o outro vendo Lula avançar nas águas profundas.

A candidatura de Lula está aí como o sol, que não precisa de outdoor. Cresce no protesto, no investimento e na esperança dos pobres e excluídos do Brasil, da classe média estrangulada e, inclusive, dos segmentos empresariais menos banqueirosos e mais racionais, convencidos de que o programa econômico do PT não questiona o capitalismo e poderá ser melhor para todos. Apesar do pedigree de esquerda do PT - para o pudor de uns e o protesto de outros - trata-se de um autêntico programa de centro-esquerda, com muitos pontos de semelhança com o de Ciro Gomes. A diferença consiste menos na proposta esquemática e mais na credibilidade do candidato, sua história, suas raízes e bases de sustentação, que dão substância à esperança de um esforço real para cumprir com os compromissos.

Ora, mas se Lula apresenta um programa de centro-esquerda e ultrapassa os 40%, na preferência popular; se a direita está dividida e tem um candidato desatraente e estigmatizado; se a exigência da verticalização impõe mais unidade; se o povo brasileiro está exausto e ansioso por uma luz no fim do túnel; se Lula simboliza este anseio, o que está faltando para a unidade da esquerda, logo no primeiro turno destas eleições? Nos aspectos programáticos e táticos, o que poderá justificar a fuga dessa tarefa, principalmente, entre as forças políticas que já vinham apoiando Lula em primeiros turnos de eleições anteriores? E em tais circunstâncias, o que legitima as candidaturas de Ciro Gomes e Antony Garotinho?

Independentemente das maquinações partidárias, dos escritórios políticos e dos trique-triques dos caciques, o povo brasileiro já definiu, na base, a unidade em torno de Lula. A candidatura de Lula é o fato novo e requer a adesão das forças de esquerda e centro-esquerda, a exemplo do que fizeram em Pernambuco, em sintonia com o sentimento popular, figuras como Pelópidas Silveira, Fernando Lyra e Miguel Batista. É preciso engrossar cada vez mais esse caldo para uma vitória com Lula no primeiro turno, pois é neste momento que as forças da direita estarão mais divididas e fragilizadas, face às disputas nos estados em torno das candidaturas a governador, senador e deputados estadual e federal.

Ganhar no primeiro turno com Lula é o mote do momento. Vamos a ele.
Artigo divulgado pela internet











À Esquerda e em Frente

Marcelo Mário de Melo

Discordo da opinião de que Lula já cansou, de que votar em Lula pela terceira vez foi demais, e de que, na próxima eleição presidencial, terá que ser lançado outro nome. Cansou mesmo? Terá mesmo? O fato é que, em termos quantitativos e qualitativos, a esquerda brasileira veio avançando eleitoralmente com Lula, nas três últimas campanhas presidenciais. E uma quarta candidatura de Lula não deve causar nenhuma preocupação especial. François Miterrand, na França, e Salvador Allende, no Chile, ganharam na quarta tentativa. Até essas vitórias, aqueles dois países vinham vivendo processos de normalidade institucional. Como no Brasil tivemos o período prolongado de ditadura, podemos dar uma carência democrática e continuar tranqüilos, acumulando forças com Lula em campanhas presidenciais futuras. Isto, sem nenhuma adoração obreirista ou partidária por Lula. Simplesmente, porque ele tem sido aquele representante da esquerda que vem agregando o maior volume de forças e de votos no embate eleitoral com a direita.
Se amanhã aparecer na esquerda um candidato - ou uma candidata - com possibilidade de melhor desempenho do que Lula, que se pense em substituí-lo. Mas que se pense dez vezes. Porque o peso eleitoral que Lula hoje concentra é o resultado do investimento num projeto político que já começa a contar décadas e vai avançando por cima de pau e de pedra. E convém não atirar fora a criança, junto à água da banheira. Aos que pretendem continuar caminhando com mais profundidade e amplitude, é importante não permitir que se desmonte o palanque de Lula de maneira inconseqüente. Isto porque, o eleitorado brasileiro vem reafirmando o nome de Lula como um importante segundo colocado na disputa à presidência. E é preciso ser responsável na estratégia eleitoral.

Também não é aceitável a rejeição a Lula, nem o clima de desânimo, a partir das derrotas eleitorais passadas. Afinal de contas, uma eleição perdida, por mais importante que seja, não é o fim do mundo. O processo político, ou o processo histórico (lembrai-vos dele!), é muito mais abrangente . E para o militante de esquerda, é de extrema importância psicológica assimilar a diferença e a contradição insolúvel entre os prazos da biografia individual e os prazos do processo histórico. Os primeiros, contados ano a ano. Os segundos, medidos por décadas e séculos. Sem essa postura, a participação política é tomada como se as suas curvas corressem mais ou menos paralelas aos ciclos da vida do indivíduo. Encaram-se conjunturas e campanhas com o espírito dos investimentos a curto prazo. Ou das corridas de cem metros rasos. E tudo vai bem, enquanto as situações são mais ou menos favoráveis. Mas nos momentos de derrota ou descenso, o risco é predominar o clima dos Quatro D: Desencanto, Desinteresse, Desmobilização e Decadência. A escala pode variar de A a Z, ou exigir a recorrência aos números negativos, geralmente necessários em casos de mudanças de lado e adesões ao bloco dominante, por parte dos que formam a esquerda de quem vem, direita de quem vai, cujo símbolo é um camaleão com fita adesiva.

Com relação à candidatura de Ciro Gomes, o ideal é que ela assuma, de fato, uma característica de centro-esquerda, e não de nova alternativa à direita, segundo o modelo já exercitado em dose dupla, através da aliança PSDB-PMDB-PFL, em torno do nome de Fernando Henrique Cardoso. Uma candidatura de esquerda, uma de centro-esquerda e uma de direita, poderão representar um importante avanço político no Brasil, trazendo também mais complexidade e sutileza ao processo eleitoral. E aí, aumentam os desafios à sabedoria política das forças organizadas em torno da candidatura de Lula, que precisam saber articular muito bem os elementos flexibilidade e firmeza.

As questões de estratégia e tática não podem ser tratadas pela esquerda brasileira com imediatismo e primarismo. No caso, os buracos são muitíssimo mais em baixo, sendo conveniente identificá-los e tapá-los, porque muita água vai passar pela ponte. E muita água poderá, ainda, minar para o barco da esquerda e do povo.
Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

Roliúde de Homero e Bibiu

Marcelo Mário de Melo

No seu romance Roliúde, picaresco, cinematográfico, Homero Fonseca deu vida a Severino Ramos Soares da Silva, Bibiu, “calculadamente nascido” em 1911, “mulherengo, enrolão, devasso, estróina, pobretão, raparigueiro, mentiroso e chachaceiro”, de quem se tem a última notícia com 85 anos de idade, terminando de contar sua história no ano de 1996.

Bibiu assistia filmes e os contava em rodas que formava em ruas, feiras, bodegas, puteiros e casas de família. No livro aparecem as suas narrativas de Em Busca do Ouro, Casablanca, E o Vento Levou, O Ébrio, Sansão e Dalila, King Kong, A Dama das Camélias, No Tempo das Diligências, Tarzan, o Rei da Selva e Aviso aos Navegantes. Sendo essa sua atividade principal, ele também foi locutor de parque de diversões e de circo, homem da cobra e mago de tarô com o nome de Bibiukoviski.

O personagem viveu o encantamento inicial da sétima arte e das linhas férreas, ficando aí demarcado o tempo das suas presepadas e o campo das suas preferências, pois para ele as três coisas melhores do mundo eram mulher cinema e trem. Bibiu é habitante do interior de Pernambuco e a narrativa é marcada por um saboroso saltitar de palavras matutas, muitas delas caídas em desuso. Mas no romance de Homero não aparecem as marcas chapadas do cangaceirismo, do bucolismo e do passadismo. Ele se situa na atmosfera típica dos interioranos que convivem nos centros das cidades, os pracianos, ou os suburbanos das capitais. Os cenários comuns são a feira, o trem, a bodega, a praia, o cais do porto, a igreja, o fiscal, a polícia, o quartel, o puteiro, a família. Afirmando as inclinações cosmopolitas, as andanças de Bibiu incluem episódios que se desenvolvem no Recife e em São Paulo, onde se torna torcedor do Coríntians e amigo de um comunista corintiano que termina preso, torturado e desaparecido.

A trajetória de Bibiu é uma seqüência de trapolinagens e presepadas com tintas de cordel, circo, cameloagem, programa de rádio e chanchada, envolvendo as punhetagens e os sarros de adolescente, o serviço militar, a galinhagem de adulto, o casamento, a traição, a cornice, a carolice, a mexericagem, a vingança de corno brabo e algumas acontecências da política, como a revolução de 1930, o Estado Novo, Getúlio Vargas, o levante de 1935, o segunda guerra mundial, a presença norte-americana em Pernambuco e o impacto da coca-cola, bebida predileta do padre da Igreja de Santo Antônio da Consagração, que a usava na missa em lugar do vinho e só foi descoberto por causa dos arrotos na hora do sermão.

O filósofo Bibiu navega nas vielas onde vive “o povinho temente a Deus e ao Governo”, de onde recolhe os elementos da sua filosofia, que vai destilando ao longo da história. E vão aqui algumas pérolas:

Sobre o ofício de viver: “uma desgraça de condição humana...iguala tudo: branco e preto, moço e velho, principal e pequeno”; o diabo é sacana: cutuca a gente e depois desaparece, rindo um riso malino da nossa aflição; “na hora do perigo, santa e puta é tudo igual”; depois do Bem vem sempre o Mal e depois do Mal o bem, feito roda-gigante; por mais ruins que estejam as coisas, sempre podem piorar; com governo, polícia e mulher baixinha não se brinca; guerra é guerra, e é onde a gente morre não se enterra;

Sobre amor e mulher: as mulheres são cheias de artimanhas, muitas vezes parecem querer ir pro norte quando querem ir pro sul; fico mais balançado vendo uma nesga de coxa do que quando me deparo na praia com aquela danação de mulher quase nua, mostrando as femeíces para todo mundo ver. Bom mesmo é a gente ver um pedacinho e desenhar o resto na cabeça”; peguei a calcinha, atochei no nariz e respirei fundo. Aquele cheirinho meio salgado, meio azedo, meio quente, meio morno, acendeu a minha venta como se eu tivesse tomado um porre de lança-perfume Rodouro.

Sobre cornos e cornice: Essa igreja aí, seu Bibiu, é a maior fábrica de corno que eu conheço; se isso não for chifre em pensamento, pelo menos é perigo de traição; esse negócio de chifre entroncha qualquer um, me desculpem a sinceridade; nem todo mundo que bebe é corno, mas todo chifrudo enche a caveira pra agüentar o rojão; são demais os perigos dessa vida pra quem se mete com mulher de corno brabo;

fazia uns carinhos experientes
a moda agora é chamar frango de homosexual; um dinossauro, um bicho horroroso do tempo antigo, desses que Noé não embarcou na sua barca; um usineiro que gastava com as putas numa noite o que não pagava de salário por mês de labuta dos seus trabalhadores;ora, Bibiu, bunda não tem pátria;

Veja só como tem gente ignorante nesse mundo, querendo estragar uma boa história por detalhezinho de nada;

a senhora não está nem no antes nem no depois, mas no tempo doe exatamente;

conheci pessoas principais, gente importante e intelectual;

Macaco velho e escolado, Bibiu não iria vacilar na hora que decidiu escrever a sua história. Seguindo a sua filosofia, foi atrás de Homero Fonseca, pois sabia que ele tinha “olho treinado, paciência e interesse”. Em Roliúde se lê que “o grande escritor de folheto, horoscopista e almanquista Jota Ferreira de Lima, dizia que o povo tem necessidade de história como tem necessidade de comer e beber”. A história de Bibiu/Homero é mais do que necessária e faz muito bem comê-la e bebê-la.

O Solidário Dom Penido

Marcelo Mário de Melo

Quando cheguei na Casa de Detenção do Recife, em junho de 1971, vindo da fase de interrogatórios no Dops e em quartéis, num dia de visita aos presos políticos conheci D. Penido, então abade do mosteiro de São Bento. Na maioria das vezes ele estava ao lado da freira Margarida Serpa (Peggy), superiora da ordem do Sacré Coeur e integrante da equipe de D. Hélder. Dom Penido também ia ao presídio feminino do Bom Pastor e a quartéis onde se encontravam outros companheiros.Durante todo o período da ditadura militar os presos políticos de Pernambuco contaram com a sua solidariedade em diversos níveis:a ajuda material, a divulgação de documentos de denúncia, a articulação junto à CNBB e às entidades comprometidas com a defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Já em liberdade, em 1980, mantive contato com o abade em busca de apoio para um fugitivo de ditadura latino-americana. Como sempre, a sua solidariedade se manifestou.

Nas longas conversas com D. Penido, às vezes sabíamos de detalhes de articulações e contatos feitos por integrantes da CNBB, no trabalho penoso de tentar localizar um preso ou descobrir as teias que pudessem revelar o itinerário de algum desaparecido. Sem ser de esquerda e contrário às ações armadas, ele assumia uma atitude antiditatorial nítida e mostrava interesse em conversar e aprofundar discussões com aqueles que visitava, na sua maioria, marcados pelo marxismo-leninismo e defensores da resposta violenta à ditadura. Era visível, da sua parte, uma atitude de abertura e entendimento. De perquirição, para falarmos em consonância com a sua condição de estudioso e erudito.

Dom Penido levava notícias de um presídio a outro e, às vezes, trazia alguma correspondência. Numa dessas ocasiões, foi portador de uma colagem de Cláudio Gurgel, que se encontrava recolhido com Mário Miranda no Esquadrão de Cavalaria, no Bonji. Quando passou pela revista a que eram submetidos os visitantes na portaria da Casa de Detenção, a colagem foi exposta pelo policial e ele se surpreendeu com o seu conteúdo, reclamando depois ao remetente: “Mas Cláudio, mandar uma coisa daquelas!”. Tratava-se de uma peça composta por letras aplicadas sobre a foto de uma bela bunda de mulher, formando o poemeto:

“Ateus, ateus
amigos meus
este poema
é de Deus”.

Na visita do Natal de 1971, D. Penido foi chegando sorridente, na área da visita, com uma garrafa de vinho na mão, nos oferecendo. Surpreendidos, perguntamos como tinha conseguido a façanha. ‘Foi muito fácil - esclareceu. Eu trouxe duas garrafas, e quando abri a bolsa, tirei logo uma e disse ao guarda: esta é a sua”.

Na Penitenciária Professor Barreto Campelo, para onde os presos políticos foram transferidos em outubro de 1973, com a desativação da Casa de Detenção, o abade também se fez presente. Dessa vez, tendo de passar pelo ritual a que eram submetidos os visitantes de todos os sexos e idades: ficar completamente despido. Coisa que ele tirou de letra, dizendo que, quando era rapaz, fazia natação num clube no Rio de Janeiro e, no banheiro coletivo, os rapazes tomavam banho e circulavam nus, com toda naturalidade.

O contato mais próximo com as prisões, as torturas, a perseguição política e o sofrimento dos familiares dos perseguidos, marcaram profundamente D. Penido. Já em liberdade, numa fala sua em cerimônia de casamento, ouvi-o ressaltar este aspecto, adiantando que usava (ou possuía) uma medalha com a inscrição: eu estive na prisão.
Falando explicado e elegantemente - a voz parecida com a de Jô Soares - nas palavras e nos gestos precisos, D. Penido transmitia uma firmeza refinada. Na sua vida ele somou para o alargamento das vias democráticas, da solidariedade e do ecumenismo: quando na relação entre as pessoas são colocados, em primeiro plano, os lençóis d’água comuns à condição humana e ao cosmos, e não os muros e as fronteiras erguidos na superfície.

Parafraseando o poeta Drummond, faço do fundo do coração esta última e retardada homenagem ao homem de boa vontade. Solidário Abade Dom Basílio Penido Burnier: eu, ateu, faço o sinal da cruz em sua consideração.

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

O Acanalhamento da Crítica

Marcelo Mário de Melo

“o rigor, primeira condição de toda crítica”
(Frederico Engels)

Ninguém é obrigado a gostar deste ou daquele produto cultural, seja pintura, escultura, filme, peça teatral ou livro. E todos possuem o igual direito de expressar o seu gosto, entrando em detalhes ou, simplesmente, afirmando a satisfação ou a rejeição.

Mas há uma categoria de cidadãos a quem é exigido, quando se manifesta, deixar explícito em que se fundamenta a sua opinião para qualificar, por exemplo, um livro, como ruim ou bom, significativo ou dispensável. Ela é constituída por críticos de cultura, críticos literários, jornalistas e todos os que recebem o encargo de escrever uma resenha ou um comentário num veículo de comunicação social.

A estes, fundamentar as opiniões é uma exigência elementar, de caráter técnico e ético. Mas parece que não é este o receituário da revista Veja, pelo menos se considerarmos o comentário irresponsável realizado por um redator anônimo na seção de resenha na edição de 03/04/00, tendo como objeto o livro “Maquiavel - O Poder”, de autoria do publicitário pernambucano José Nivaldo Júnior, publicado em segunda edição pela Editora Martin Claret e que tem figurado nas listas dos mais vendidos de revistas e jornais de âmbito nacional como Veja, Isto É, Exame e Jornal do Brasil.

Num determinado momento, o redator oculto revela discordar da afirmativa de José Nivaldo de que O Príncipe de Maquiavel é “um manual do que hoje denominamos marketing político.” Imaginamos que, a partir desse núcleo, viesse a ser estruturada uma crítica, ou ao menos levantados alguns argumentos enriquecedores no plano teórico. Mas isso não ocorre.

Revelando total descompromisso com a função social da crítica e incorrendo no terreno do simples “verbalismo raciocinante”, o autor passa a taxar o livro de “um frankestein... um livro desconjuntado, que não diz ao que veio nem para onde vai”. E continua o ensaio de vulgaridade, com o assassinato da língua portuguesa – desta vez em alto nível - numa frase que exige o exercício da decifração: “Se o publicitário pretende apenas repetir os conselhos que ele dá aos governantes, para que lê-lo?”.

O que o redator oculto quis dizer foi o seguinte:” Se José Nivaldo pretende apenas repetir os conselhos que Maquiavel dá aos governantes, para que se ler José Nivaldo?. Decifração concluída, é de se lastimar que o domínio da língua não seja também um componente essencial exigido dos que fazem resenhas de livro em publicações de âmbito nacional.

Na conclusão do texto, o redator oculto revela a face da canalhice, quando escreve o seguinte: “Afinal, se existe um consenso a respeito de Maquiavel , é que ele era um ótimo escritor. Ao contrário desse autor fajuto chamado ... Nivaldo, Geraldo? Como é fácil esquecer o nome desse sujeito.” Ora, quem escreve tão tropegamente, derrapando nos pronomes e colocando vírgula entre sujeito e predicado, não pode se dar ao desplante de avaliar a qualidade literária do texto de ninguém.

E desde quando o nome de um autor passa a ser parte integrante da crítica da sua obra?. Fica a especulação sobre se essa crítica ao livro de José Nivaldo Junior expressa a presença ou a articulação de algum desafeto ou concorrente ressentido, ou se constitui mais um exemplo fascistóide do preconceito contra nordestino.

Precisamos de uma crítica de cultura rigorosa e frontal, que se exerça acima e além de simpatias e antipatias pessoais, e não dessa modalidade de crítica de sarjeta, que despeja dejetos através de um sujeito oculto.

A Resistência de Cândido Pinto de Melo

Marcelo Mário de Melo

“Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou”
(Ferreira Gullar)

Cândido Pinto de Melo tinha 22 anos de idade, estudava engenharia no Recife e era presidente da UEP – União dos Estudantes de Pernambuco, entidade cassada pela ditadura e reestruturada pelo movimento estudantil em eleições diretas. No dia 28 de abril de 1969, nas imediações da Ponte da Torre, sob a mira de um atirador mascarado, foi intimado a entrar num carro. Reagiu e salvou a vida. Um disparo do bandido lhe seccionou a medula abaixo do peito. A partir daí, até a sua morte na sexta-feira, Cândido viveu 33 anos de uma resistência política e existencial tenaz e tocante, que o colocam num plano elevado da condição humana.

De repente, encontrava-se paraplégico aquele militante aligeirado no andar, mergulhado nas falações em assembléias e passeatas, nas correrias de rua e nas articulações clandestinas. Ante essa nova condição, ele empenhou-se para mobilizar ao máximo as forças disponíveis. No tratamento em São Paulo, viu a possibilidade de utilizar uma espécie de armadura, que lhe permitiria andar com muletas alguns metros. Os especialistas não admitiam que o equipamento fosse utilizável no seu caso. Teve de recorrer a cálculos físico-matemáticos para convence-los.

Cândido terminou o curso de engenharia respondendo a processos pela Lei de Segurança Nacional, vendo as invasões policiais nos hospitais e na sua casa, com os amigos e familiares sendo revistados, ameaçados e perseguidos. A vivência hospitalar levou-o a se especializar na engenharia biomédica. Tornou-se um profissional respeitado nessa sua área, compôs a equipe do Dr. Jesus Zerbine e era funcionário do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi um dos fundadores da Associação de Bioengenharia Brasileira.

Na cadeira de rodas, Cândido continuou seguindo sempre à esquerda. Integrou-se ao movimento pela anistia, ingressou no Partido dos Trabalhadores, atuou no movimento dos portadores de deficiência e foi fundador da sua entidade nacional. Procurava acompanhar o debate em torno do projeto socialista e do pensamento marxista, a que se mantinha alinhado.
Quando veio ao Recife em 1999, denunciar os 30 anos de impunidade do atentado que sofreu, Candido publicou um longo artigo (JC de 18/4), fazendo uma retrospectiva da resistência contra a ditadura e se posicionando politicamente na atualidade.
São suas palavras: “Dos governos militares ao neoliberal de hoje, as necessidades da grande maioria da população sempre foram excluídas das prioridades e as políticas públicas sempre foram voltadas aos interesses das elites e oligarquias nacionais e regionais. Estas oligarquias estiveram no poder na ditadura e mantêm-se hoje no poder, graças a alianças que lhes fornecem o ‘oxigênio’ necessário à sobrevivência política”.E arremata: “...enquanto continuarem a miséria e a desigualdade, o sonho continua e sempre se saberá de que lado ficar”.
Quando o governo da Frente de Esquerda do Recife o chamou para assumir a direção da Empresa de Processamento de Dados do município, Cândido licenciou-se do Hospital das Clínicas, voltou à terra e assumiu a tarefa.

A dramaticidade, a dignidade e a grandeza da vida de Cândido Pinto de Melo, vítima de um atentado na condição de presidente de uma entidade estudantil proibida, não permite a sua utilização, hoje, como objeto de malversação política por parte de pessoas que, na época, ocupavam funções importantes nos governos biônicos ou na representação parlamentar da ditadura.

Cândido sempre manteve a denúncia do atentado que sofreu e da teia de solidariedade criminosa que se construiu para preservar os responsáveis e ainda hoje se faz presente para impedir, ao menos, o esclarecimento factual do caso. Mas a consciência de vítima e a atitude de denúncia não o transformaram numa pessoa obsessiva, mórbida, retraída, centrada em si mesma e movida a bílis.
Encarando as suas circunstâncias, ele desenvolveu uma resistência construtiva, procurando fruir o mais plenamente possível o arco-íris da vida. Dedicou-se ao tratamento médico permanente, à formação profissional, à militância, às amizades e à vida afetiva. Casou-se com Joana Figueiredo e construiu com ela uma família formada pelos filhos Ana Luiza e Bruno. Quando morreu, vivenciava a condição de avô do menino Lucas, com cinco meses.

Depois do atentado, a vida de Cândido foi um permanente transitar por hospitais, enfrentando infecções e cirurgias, consumindo dosagens elevadas de medicamentos pesados. Nos últimos tempos, submeteu-se a uma cirurgia, passou por UTIs e colocou um marca passo, sofrendo um abalo físico impressionante. Até que, aos 55 anos, trabalhou dois expedientes, foi ao teatro, jantou com a mulher, os filhos e os irmãos Cláudio e Celso.Em casa, deitou-se para dormir e morreu de embolia pulmonar na primeira hora do sábado 31 de agosto.

A história que Cândido Pinto de Melo escreveu nesses 33 anos toca fundo e faz com que, na perda e na lembrança, os momentos de convivência com ele cintilem como jóias raras. Na última ceia, Cristo ofereceu aos apóstolos o pão e o vinho, como se fossem o seu corpo e o seu sangue. Que o exemplo de Cândido também nos alimente, para enfrentarmos as dificuldades individuais e políticas e mantermos o rumo na construção de um Brasil e de um mundo onde predomine a vida em abundância, por que ele tanto lutou.
Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

Anselmo e a Democracia

Marcelo Mário de Melo

O Caso Anselmo coloca para os democratas brasileiros questões mais importantes do que a polêmica secundária em torno da concessão dos seus direitos de anistiado, assegurados pela sua simples condição de militar cassado e expulso das forças armadas.

Levanta-se a hipótese de que Anselmo já era um agente infiltrado da direita no movimento popular, desde 1964. Mas também é possível um processo de degenerescência posterior, que resultou na sua atuação como traidor a serviço dos organismos de repressão da ditadura, gerando prisões e mortes de dezenas de militantes, inclusive, da sua própria companheira, com um filho seu na barriga. Também esta uma questão secundária.

O caráter repelente de Anselmo nesse segundo momento da sua vida é acentuado pelo cinismo das suas declarações atuais, tentando justificar o injustificável. Ele se coloca em julgamento político-ideológico e ético ante as forças de esquerda, a opinião pública e a história. O que também é uma questão secundária.

E vamos ao fundamental.

O Caso Anselmo coloca em questão a famigerada “Anistia Recíproca” brasileira, absolvendo sem julgamento os mandantes, praticantes e auxiliares do sistema de torturas, civis e militares, que continuam impunes e encastelados nas instituições republicadas, notadamente nas forças armadas, falando em democracia e cidadania. Isto é o que alimenta a sem-cerimônia de Anselmo.

Em outros países latinoamericanos que passaram por ditaduras, como o Chile e a Argentina, os generais torturadores ainda são colocados no banco dos réus, depois de revogada a legislação que os blindava. É esta diferença que permite, no Brasil, assistirmos Anselmo desfiar impunemente o rol dos seus crimes.

O fato é que, desde a queda do império, nunca depuramos a nossa república da tutela militar, eterna fonte de golpes-de-estado e intimidação sobre o poder civil. Veja-se, por exemplo, a autonomia dos comandos militares na reiterada comemoração, ainda hoje, do golpe de 1964, incensado nos quartéis como revolução libertadora. Lembrem-se da acintosa e ainda recente queima de arquivos de organismos militares e da não apuração das responsabilidades a respeito. Pensem na empedernida insistência em não abrir os arquivos secretos da repressão ditatorial. Considerem a manutenção, ainda hoje, da medida provisória de Fernando Henrique Cardoso que permite o adiamento sine die do acesso público a esses arquivos. Constatem a fragilidade do nosso ministério da Defesa.

Que se coloquem na pauta democrática a não conciliação com a tortura, a abertura dos arquivos da repressão ditatorial e o pleno controle do poder civil sobre os comandos militares.

É necessário no Brasil colocar a tortura como crime hediondo e quebrar a prévia isenção de culpa dos torturadores de todas as épocas. Sem isto, e agora falando em termos de presente e de futuro, estaremos avalizando a manutenção do sistema de torturas que hoje ainda vigora nas instâncias policiais e penitenciárias, além da violência policial generalizada, atingindo principalmente, como no passado, os pretos e os pobres do País, ou a maioria dos pobres, pretos e brancos.

Precisamos também enfrentar o corporativismo militar, o mais pernicioso entre todos, porque intimidatório e armado. E que possui historicamente um lastimável saldo negativo, cujas manchas de sangue não podem ser apagadas e é preciso que sejam reveladas. A reforma militar se coloca, portanto, na ordem do dia, devendo operar numa linha dupla. Por um lado, modernizando e fortalecendo as forças armadas, para que elas possam cumprir as suas funções de defesa das nossas fronteiras e das nossas instituições republicanas. Por outro lado, estabelecendo sem nenhuma margem de dúvida a obediência ao poder civil e a não ingerência dos comandos militares nos assuntos políticos.

Ante o debate suscitado pelo Caso Anselmo, os militantes de esquerda, principalmente aqueles que foram presos, torturados, e carregam depoimentos sobre presos políticos mortos e desaparecidos, têm a responsabilidade de manter a racionalidade política e a postura republicana, colocando em primeiro plano as questões que são fundamentais para que se construa, no Brasil, algo que mereça ser chamado de República Democrática.






David Capistrano Filho: saga e sonhos da juventude

Marcelo Mário de Melo

“O amigo é um momento de eternidade”
(Nelson Rodrigues

Era uma vez um menino chamado David Capistrano da Costa Filho, que nasceu no Recife no dia 7 de julho de 1948 e morreu na cidade de São Paulo, no Hospital Sírio-Libanês, em 10 de novembro de 2000.
Em 1947, sendo presidente do Brasil o Marechal Dutra, tinha havido a cassação do registro do Partido Comunista. E como os pais de David – David Capistrano e Maria Augusta – eram comunistas, tiveram que fugir e viver na clandestinidade. O menino David, portanto, foi um comunista de nascença. A partir de 1956, com Juscelino Kubitschek na presidência do Brasil, os comunistas passaram a viver uma semi-legalidade. A família Capistrano saiu dos esconderijos pelo sul do País e voltou a morar no Recife.

Em 1962, com 14 anos de idade e estudando no Colégio Estadual de Pernambuco, Davizinho entrou na base comunista que ali funcionava, formada por 25 jovens. Depois dos 17 anos, David morou nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde casou duas vezes, teve quatro filhos, foi líder estudantil, médico, jornalista militante, autor e editor de livros, articulador político, conferencista, secretário municipal de saúde, prefeito de Santos, consultor do Ministério da Saúde, sempre viajando pelo Brasil e pelo exterior. Mas essa parte da sua história é muito conhecida. E eu quero destacar aqui, com o coração lagrimando tristeza e saudade, a fase infanto-juvenil de David Capistrano Filho em Pernambuco.

As maiores amarguras e aventuras políticas de David começaram em 1964. No dia 1O de abril houve um golpe de estado no Brasil e foi metralhado numa passeata o seu maior amigo, Jonas Augusto, que tinha 19 anos e era companheiro da base do Colégio Estadual. Também morreu Ivan Aguiar, estudante de engenharia e comunista, além de um rapaz e uma moça nunca identificados. David pai fugiu, Maria Augusta foi presa na polícia e Davizinho recolhido a um quartel do exército.Um dia o coronel Ibiapina parou na sua cela e disse: “A culpa da sua prisão é do seu pai, um comunista irresponsável”. Davizinho respondeu: “Meu pai é um homem bom e honesto”. O coronel mandou que lhe tirassem o colchão, fazendo-o dormir no chão. Durante alguns dias repetiu a mesma pergunta e recebeu a mesma resposta. Davizinho terminou sendo transferido para o Juizado de Menores, preso entre meninos infratores. Libertado, tinha-se consumido o semestre escolar e ele se concentrou nos estudos para passar de ano no Colégio.

Depois do golpe, David intensificou a atuação política: rearticulando o setor secundarista, publicando jornais, fazendo pichações e panfletagens e participando das infindáveis discussões internas do PCB, em torno da interpretação do golpe e dos rumos a seguir na nova conjuntura política. Em 1965 ele participou de um concurso estudantil de oratória, com o tema da prostituição. No final desse ano David saiu de Pernambuco com Maria Augusta e as irmãs, Cristina e Carolina. A família ia se reunir com o pai.E David procurava escapar das garras do coronel Ibiapina, que havia prometido lhe prender quando completasse 18 anos. No Recife, David também atuou no Clube Literário Monteiro Lobato e na Associação Literária Machado de Assis, entidades juvenis.

Do Rio, David começou a se corresponder com um companheiro da base do Colégio Pernambucano, com quem fez amizade e atuou intensamente no período posterior ao golpe militar. Ele usava o pseudônimo de Jansen e, o amigo, o de Radiel. Trocaram dezenas de cartas, de janeiro de 1966 a julho de 1968. Os dois fizeram opções políticas diferentes dentro da esquerda, encontraram-se em plena divergência e mantiveram a amizade. Radiel foi feito preso político em Pernambuco e, num dia de visita, na década de 70, recebeu do amigo Jansem, pelas mãos de uma amiga comum, uma cartinha indicando a seqüência para a deglutição competente de uma cesta de doces, bolos, queijos, cremes e guloseimas que lhe enviava de São Paulo. Depois de 1979 os dois amigos se reencontraram, trocaram novas cartas e passaram a se ver sempre que podiam, morando em estados diferentes. No dia 12 de julho de 1982, atacado de leucemia, David fez um tratamento com cobalto e escreveu do hospital: “Continuo batalhando aqui no meu leito de doente. Já são 19 dias de internação. Já estou quase careca. Mas melhoro. Confio que irei para casa dentro de uns dez dias, mas ou menos. Acho que vou ficar bom. Não me sinto fadado a morrer jovem”.

Lendo-se as cartas de Jansen para Radiel, pode-se ver que, do adolescente ao homem maduro, David Capistrano filho manteve uma linha de coerência e compromisso com as suas referências fundamentais – a esquerda, o socialismo, a democracia, o povo, a saúde pública, a arte, a cultura, a família e a amizade. Ainda conversei com ele por telefone, no seu leito de doente, depois do transplante de fígado, logo após os resultados das eleições municipais. Ele estava vibrando com a chegada de João Paulo ao segundo turno no Recife e falou em fazer uma gravação de apoio.

E agora dou a palavra ao próprio David, com citações de suas cartas:

“Plantaremos mangueiras, caramboleiras, belos laranjais. Haverá frutas com fartura, verduras, cereais, legumes, milho a perder de vista, arroz e todas as coisas boas e bonitas” ( janeiro de 1966)

“a minha esquerda é aquela alegre, amante da vida e de suas boas coisas- o vinho, a comida, as mulheres (ou os homens), as crianças e as brigas”

“Sem generosidade, vamos para o buraco” (abril de 1982)

“A comunicação - colaboração – compreensão é a coisa mais maravilhosa que existe!” (janeiro de 1966)

“Só me sinto homem, radicalmente distinto de todos os animais, na condição de amigo. A mais alta e a mais dignificante das condições: amigo. E comuna. Amigo, amigo-comuna, comunas.” (março de 1966)

“. franqueza é a grande arma com que se conquistam as grandes amizades. Sejamos, pois, bem francos um com o outro” (julho de 1966).

Na sua última cirurgia, David Capistrano Filho, que tanto reverenciava a amizade, recebeu a doação de meio fígado do médico Davi Rumel, que nesses tempos cinzentos de cólera plasmou com generosidade e afeto uma história de amigos figadais.

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE, Ed 6/12/2001

Proposta para Discussão

Marcelo Mário de Melo

Dois exclusivismos têm marcado a ação política da esquerda brasileira e impedido o engrossamento do caldo democrático-popular da oposição: o eleitoralismo e os atos de protesto calendarizados e vanguardistas contra as medidas consumadas das forças direitosas imperantes. Coisa que tem reduzido as entidades populares a produtoras de eventos, os partidos políticos a agências eleitorais e os militantes a desfilantes. Isto se complementando com a atitude de esperar que a aliança no poder se desagregue pelo resultado espontâneo das suas contradições internas, da ineficiência social do neoliberalismo e da corrupção cavalar. Sem falar nos que ainda pensam que o agravamento das condições de vida do povo poderá conduzir a um limite de saturação e fecundar um basta, esquecendo a advertência de Mário de Andrade: “miséria pare vassalo”.

Acima e além deste círculo fechado, é preciso avançar politicamente, com raízes, caules, folhas, flores e frutos. O que não é possível com a auto-estima do povo lá em baixo. E o que permite elevar a auto-estima das massas, no futebol e na política, é a capacidade de conquistar determinados objetivos imediatos que marquem pontos positivos. Está certo que se navegue em todas as contribuições pós-leninistas em matéria de estratégia e de tática. Mas é sumamente emburrecedor e infrutífero resvalar no pré-leninismo. E o velho Wladimir recomendava, se possível, uma vitória por dia, mesmo que pequena, para levantar o moral do povo, sendo função da vanguarda empenhar-se neste sentido. Enquanto os neoliberais propagam a competitividade individualista, o engole-engole de pobre contra médio e de pobre contra pobre, na disputa pelos ossos do banquete e em meio às ilusões virtuais e televisivas do marketing político, cabe à esquerda vicejante intensificar a mobilização das massas em torno de objetivos práticos e palpáveis, que melhorem a vida e elevem o astral. Politicamente, esta é a nossa razão de existir. E isto pode ser feito, paralelamente às articulações cupulosas, eleitorais e grupais, em que muita gente se especializou, se extremou e se deformou.

Afinal de contas, para que diabo serve uma vanguarda se não for para ajudar o povo a viver e conviver melhor? Vanguarda de si mesma não existe: é clube, seita ou quadrilha. E pode ser considerada substanciosa e conseqüente uma vanguarda tarada, que só pensa naquilo (as eleições) e se restringe a atos militantosos de protesto, ações de marketing e emoções cubiculares? Companheiros, um pouco de mobilização popular não faz mal a ninguém. Pelo contrário. Articular os barulhos do marketing com o movimento das massas é uma fórmula competitiva que pode render bons juros na bolsa dos valores políticos e sociais da população exaurida e tão compreensivelmente desencantada e desconfiada com a política e os políticos. Nós, que sentimos nas nossas fileiras as sombras do adesismo e as gosmas das disputas autofágicas, se rompermos com o círculo fechado do cupulismo, poderemos nos rejubilar ante o espetáculo da divisão dos nossos inimigos políticos e os saldos de vitória das grandes campanhas populares, que ajudam o povo a levantar a cabeça e melhorar a vida. Fora disso, é navegar nas águas insossas e pantanosas de uma ação política capenga, que promove personalidades e grupos, mas é incapaz de alimentar as conquistas coletivas, a organização popular e a autoconfiança das massas.

Sejamos precisos e práticos, descendo aos talhes dos detalhes, para lançar algumas campanhas nacionais de mobilização popular, ou uma só campanha cativante em torno de três ou quatro itens que respondam aos interesses de três grandes segmentos: os assalariados em geral, os pequenos e médios empresários, os subempregados e excluídos da cidade e do campo. Colaborando com os finalmente, proponho a campanha pela atualização imediata da tabela do imposto de renda, há sete anos congelada. Existe em tramitação um projeto de lei abrangente sobre o assunto. Mas a campanha deve se restringir à atualização da tabela, que pode ser feita por decisão administrativa. Há muito conhecimento acumulado sobre o assunto, sendo necessário, apenas, produzir material de agitação e programar as ações.Vamos listar as outras duas ou três questões.

Que os partidos políticos, sindicatos, associações populares, entidades estudantis, organizações não-governamentais, parlamentares, líderes, dirigentes, assessores e adjacentes, discutam esta proposta com o objetivo de que ela saia do papel para a vida, como dizia D. Hélder Câmara referindo-se à Constituição de 1988. Mãos à obra.

Bem-Aventurada Peggy

Marcelo Mário de Melo

Em 1971, chegando na Casa de Detenção do Recife, conheci Peggy nos seus 32 anos de idade. Presença atraente e enérgica, gesticulando e falando rápido, ela se destacava nas nossas visitas. Através dela, os presos políticos de Pernambuco, muitos de formação marxistae ateus, passaram a dialogar e a aprofundar amizade com cristãos progressistas ou de inspiração socialista, num frutuoso exercício recíproco de quebra de preconceitos e unidade nas coisas essenciais da vida. Originária de uma família abastada do Rio, Peggy, que não usava hábito, era a irmã Margarida Serpa, superiora da Ordem do Sacre Coeur, professora da Universidade Católica e integrante do setor progressista da igreja Católica no Recife, ligada a D. Hélder Câmara. Começava a visitar os presídios e a se integrar na solidariedade aos presos e às presas políticas, que na época cumpriam penas, respectivamente, na Casa de Detenção do Recife e no presídio feminino do Bom Pastor. As visitas aos presídios, o engajamento na luta pela anistia e no apoio às duas greves de fome dos presos políticos de Pernambuco, em 1975, renderam a Peggy o constrangimento de ser arrastada à presença dos órgãos de segurança.

Pelas mãos de Peggy conhecemos o padre francês radicado no Recife, Henri Cossart, ou simplesmente Henrique. Tempos depois ela nos comunicou que estavam namorando. Parodiando Cristo, eles apelaram: “Pai, afasta de nós esta batina e este hábito!” E partiram para beber o cálice. Casaram-se e tiveram dois filhos, Arnaldo e Francisco. Quando Henrique foi aposentado como operário metalúrgico, iniciaram uma vida rural no Sítio dos Macacos, em Gravatá, passando aí a cuidar de filhos e flores.

Firmando amizade, já na Penitenciária Professor Barreto Campelo, para onde fomos todos transferidos em outubro de 1973, um dia prometi a Peggy partilhar com ela a primeira cerveja, quando fosse solto. E em abril de 1979, na manhã da liberdade, cheguei à sua casa para cumprir o trato. Reencontramo-nos na formação do PT, nos comícios de Lula e nos víamos em eventos do movimento popular. Até que, no dia 14 de maio de 2001, em pleno exercício da solidariedade, quando se encontrava numa repartição pública em Gravatá, com dois trabalhadores rurais que cuidavam da aposentadoria, Peggy teve um ataque cardíaco e morreu num táxi em direção ao hospital.

Peggy participou do Jornal dos Bairros, mergulhou nos movimentos populares e na luta pela anistia, participou da formação do PT em Pernambuco, destacou-se no trabalho com a oposição metalúrgica, atuou junto ao Sindicato das Domésticas e apoiou os agricultores do Sítio dos Macacos, tendo o cuidado de não aparecer como figura de proa, para evitar o velho cupulismo político e não impedir o surgimento de lideranças locais.

Peggy viveu com fome e sede de justiça. Levantou bem alto a lâmpada da verdade. Enfrentou os vendilhões do templo. Optou pelos pobres. Visitou os presos. Ajudou os famintos a se alimentarem de resistência. Queimou-se nos fogos do amor. Pariu, amamentou. Foi parceira do marido e dos filhos. Lutou, bebeu e festejou com os companheiros e amigos.

Peggy foi fermento na massa e salgou a terra com gestos largos. Agora que o seu corpo volta à terra, desejamos que ele dê boas flores e bons frutos. E desenrolamos as lembranças para reter a presença e atravessar a saudade.

ANUNCIAÇÃO DE PEGGY

Marcelo Mário de Melo

Me é impossível
fazer um poema
nos ritmos de Peggy.

As palavras c o r r e m
sobem
sobre
as
outras
ligeiragitosas.

Incandesce a pena
peggyando fogo
nos clarões de Peggy.

E assim impossível
peggy-poemá-la
resta-me somente
peggy-anunciá-la:

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
Parece brincadeira
mas é freira.

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
pelo diabo ou por Deus
tentando os ateus.

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy vindo
violentando a estrutura da matéria!

(Casa de Detenção do Recife, 1971)

Apolônio de Carvalho: aliando luta e leveza

Marcelo Mário de Melo

Apolônio de Carvalho teve uma vida com vários roteiros. E uma vida envolvida em importantes acontecimentos da história do Brasil e do mundo, nos quais ele sempre esteve combatendo ao lado das forças democráticas e socialistas. Começou na Academia Militar, no Rio Grande do Sul, como tenente do Exército Brasileiro, integrando-se à Aliança Nacional Libertadora, vertiginoso movimento democrático-popular em nome do qual eclodiu o levante militar revolucionário de 1935. Atingido pela repressão, Apolônio foi recolhido a um presídio político no Rio de Janeiro. Libertado, alistou-se nas Brigadas Internacionais, na Espanha, onde atuou como comandante em inúmeras batalhas. Com a derrota da República espanhola, atravessou a fronteira e passou a viver na França num campo de refugiados, em regime de semi-prisão. Com a ocupação pelos nazistas, integrou-se ao PC Francês e à resistência francesa, onde chegou a comandar 2.000 homens e foi responsável pela libertação de duas regiões.

Na França Apolônio conheceu Rennée, jovem militante de uma família de comunistas que atuava no transporte de explosivos e em outras missões, com quem teve dois filhos, nas alternâncias do amor e da guerra. Com a onda democratizante do pós-guerra e a queda da ditadura Vargas no Brasil, o Partido Comunista na legalidade, Apolônio regressa e vai dirigir a União da Juventude Comunista. Estamos em 1945. Em 1947 o PC é posto na ilegalidade e a UJC dissolvida. Em seguida, os deputados comunistas têm os mandatos cassados. Novamente, Apolônio mergulha na clandestinidade, cumprindo tarefas organizativas determinadas pelo Comitê Central.

Em fins da década de 50 e até meados da década de 60, quando o PCB viveu um clima de semi-legalidade, integrando o seu Comitê Central, Apolônio ministrava cursos de marxismo em todo o país e era responsável por uma coluna no jornal Novos Rumos, onde respondia a indagações teórico-políticas dos militantes. Com o golpe militar que implantou a ditadura no Brasil em 1964, ele se coloca na ala esquerda do Comitê Central do PCB, denominada de Corrente Revolucionária, que defendia a preparação para a luta armada. A luta interna resultou na Formação do PCBR - Partido Comunista Revolucionário, cujo Comitê Central Apolônio integrou, ao lado dos jornalistas Mário Alves e Jacob Gorender, entre outros.

Em 1969, com 58 anos de idade, Apolônio foi preso e resistiu à prisão e às torturas. Em 1970 foi incluído numa lista de presos políticos libertados em troca da liberdade de um embaixador seqüestrado. Da Argélia passando à França, atua na fundação do Partido dos Trabalhadores, integra o seu Diretório Nacional e é eleito vice-presidente, ao lado do presidente Luis Inácio Lula da Silva.

Somente por recomendação médica, na década de 90, Apolônio afastou-se da militância política intensa. E aí dedicou-se a escrever o seu livro de memórias, intitulado "Vale a Pena Sonhar", onde traça um largo painel da sua experiência política e faz o reconhecimento autocrítico dos erros coletivos e individuais de dogmatismo e estreiteza política, agitando as bandeiras da criticidade, do pluralismo, da flexibilidade política e do amplo trabalho de massas, como norteadores da luta pela democracia e o socialismo.

Falar de Apolônio de Carvalho, apenas, exaltando os seus feitos militares, a sua dedicação e o seu heroísmo diante dos torturadores, é retratá-lo com a face mutilada. A grandeza de Apolônio foi, exatamente, aliar a tudo isto uma elevada delicadeza, uma vasta coloquialidade, um jeito afetivo e atencioso de tratar, um espírito de confraternização permanente, traduzido em olhos atentos e espertos de quem está sempre com um cálice imaginário na mão, pronto para levantar um brinde às coisas boas e belas da vida. Talvez por tudo isto, o seu grande amigo, o ator, o escritor e compositor Mário Lago tenha dito que Apolônio não era um homem: era um anjo. E para não deixar de falar dos seus defeitos, vão aqui dois deles: era um entusiasta exagerado e transmitia largamente, sem nenhum cuidado, o vírus da esperança.

Publicado em La Insignia. Brasil, 24 de setembro.

As Eleições e os Poderes

Marcelo Mário de Melo

As instituições da república brasileira são fortemente marcadas pela tradição da escravatura e da corte portuguesa, caracterizando o que se pode chamar de república imperial e cortesã.

O Poder Executivo é muito centralizado e o presidente, chefe da nação e chefe do governo, detém alguns atributos de um monarca. Mas, salvo as largas exceções das investiduras ditatoriais, os presidentes são escolhidos por eleições, passam pelo controle do Legislativo e podem ser destronados por processos de impeachement, como ocorreu com Fernando Collor de Mello.

O Poder Legislativo também é super-poderoso e prenhe de privilégios de casta, constituindo a arena em que despontam com mais evidência a desqualificação e as deformações do processo político brasileiro. Mas os parlamentares são escolhidos pelo voto, estão muito expostos à crítica pública e, de vez em quando, assistimos a processos de apuração de responsabilidades que resultam em cassações de mandatos.

Os membros do Poder Judiciário são vitalícios e, diferentemente do Executivo e do Legislativo, estão acima de qualquer controle público. Como na tradição judaico-cristã Moisés recebeu as taboas da lei diretamente de Deus, restou aos juízes e promotores a aura de representantes terrenos do Altíssimo, situados no olimpo e preservados de quaisquer influências dos simples mortais.

No momento eleitoral, todas as mazelas da república vêem à tona, pois é nele que os governantes e os parlamentares se empenham em renovar os seus e/ou os mandatos dos seus aliados. Trata-se de um vale-tudo, que o poeta Henri Heine, numa metáfora eqüina, comparou a uma corrida de pangarés. E são muitos pangarés com fantasia de puro-sangue, mostrando-se com as maquiagens do marketing.

Embora não seja submetido aos processos de seleção e escolha, o Poder Judiciário também desponta nesse momento. São exigidos os cuidados específicos da Justiça Eleitoral e a disputa pelo voto apresenta a sua face de guerra jurídica, gerando ações judiciais de todo o tipo. Os representantes da justiça também ocupam o centro da cena e se colocam na linha dos refletores, expondo um plantel de pangarés e puros-sangues.

Humano, demasiadamente humano.
Político, demasiadamente político.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Josué de Castro: um gigante multifacético

Marcelo Mário de Melo

“A mim cabe falar de mim, da minha era”, disse o poeta russo Wladimir Maiacovski. Esta diretiva se aplica por inteiro a Josué de Castro, que viveu profundamente envolvido nas teias e nos dilemas do seu tempo, como intelectual e político. Ou intelectual-político. Que formulou questões nos mais diversos campos do conhecimento, sempre procurando lhes dar respostas, na teoria e na prática. Com estudos de laboratório e pesquisas de campo. Andando por mangues e sertões brasileiros e nos seus correspondentes em outras partes do mundo. Propondo novas políticas públicas e assumindo a sua execução. Criando e dirigindo centros de estudos. Escrevendo artigos, ensaios e livros, da ciência à literatura. Fazendo conferências em fóruns nacionais e internacionais. Ocupando a tribuna parlamentar, dando entrevistas e falando em comícios.

Sempre com o olho universal e pluridimensional, Josué de Castro pertence ao círculo dos intelectuais-inventores. Daqueles que, superando esquematismos e limitações de época e escola, ultrapassam fronteiras de conhecimento e lançam novos paradigmas teóricos, provocando também o alargamento e o aprofundamento nas abordagens políticas e instrumentais.

Em Josué de Castro, os horizontes do cientista são reforçados pela experiência do médico na sua clínica pioneira nos assuntos da nutrição. À condição de teórico soma-se a de professor, no exercício da cátedra. Ao pensador se agrega o artista, que traduz em prosa literária os impactos e as situações-limite da fome, tecendo dramas e tragédias que enovelam o cotidiano de personagens-símbolos. E há ainda o cine-maníaco, que procurou difundir nas telas o drama da fome e suas alternativas.

Sobre tudo isto se levanta o orador excepcional e poliglota. Que impressiona platéias em improvisos na França, na Itália ou nos Estados Unidos. E encanta em conferências especializadas sobre assuntos de nutrição. Que desencadeia aplausos em auditórios estudantis. E arranca ovações em gigantescos comícios eleitorais.

Há ainda o professor ambidestro, que numa sala de aula começa a escrever no quadro com a mão esquerda e, a meio caminho, troca o giz para a mão direita e prossegue. O mesmo que anota taquigraficamente perguntas de jornalistas e as responde com precisão. Ou aquele que em rodas de amigos relata com sabor cinematográfico as suas andanças pelo mundo.

Nesta introdução, a dificuldade de não poder desenhar um retrato 3x4, incompatível com a figura intelectual e política de Josué de Castro, um pernambucano universal e múltiplo que se dizia um “interessado no espetáculo do mundo” e esclarecia: “a minha medida é o homem. O resto é paisagem”.

Introdução a Josué de Castro Perfis Parlamentares 52 Plenarium - A editora da Câmara dos Deputados Brasília 2007

Redução da Jornada de Trabalho

Marcelo Mário de Melo


Vivemos uma situação paradoxal na atual sociedade capitalista. De um lado, uma massa de trabalhadores sendo submetidos a jornadas de 44 horas semanais com um ritmo hora a hora cada vez mais intensificado. De outro, uma legião gigantesca de subempregados e desempregados. E para completar a paisagem, as filas em busca de emprego, as inscrições para concurso e o exercício de um arco-íris de atividades voltadas para se auferir algum trocado. Esse paradoxo já se colocou em cena em outros momentos da história.

Com a passagem da manufatura para a indústria, a produtividade do trabalho humano deu um grande salto, provocando uma larga dispensa de mão-de-obra. Legiões de trabalhadores desempregados alargavam o mar dos excluídos. Para muitos deles, a máquina passou a ser vista como a grande inimiga. E surgiram explosivas campanhas de quebra-máquinas. Até que as idéias se ajustaram na campanha internacional pela jornada de oito horas de trabalho, como uma forma de estabelecer um novo equilíbrio entre a produtividade-hora e a jornada diária de trabalho, atenuando os rigores da exploração capitalista.Com altos e baixos e à custa de sangue e mortes, a chamada “semana inglesa”, com as 48 horas semanais, terminou se impondo em todo o mundo.

Na década de 70 as centrais sindicais européias, ante os novos patamares de produtividade do trabalho, acompanhadas das ondas de demissões, levantaram a bandeira da jornada de 35 horas semanais, sob o lema de trabalhar menos para trabalharem todos. Na década de 80 a reivindicação foi assimilada. E no Brasil, num efeito retardado e reduzido, a Constituição de 1988 acompanhou a tendência, consagrando a jornada de 44 horas semanais.

Daquela época até agora, a produtividade continuou avançando com a telemática, a bioengenharia, a robótica, a informática e as novas formas de organização e gerenciamento da força de trabalho. E as demissões continuaram se alargando em todo o mundo, ampliando os contingentes da mão de obra opcional de reserva.

Hoje, uma hora de trabalho assalariado rende infinitamente mais do que rendia há 5 ou 10 anos atrás. Mas o que vemos é uma situação-padrão típica dos momentos anteriores do sistema capitalista. Por um lado, os que ocupam os postos de trabalho com uma jornada cada vez mais intensa e tendo de recorrer às horas-extras para suprir as suas necessidades. Por outro, as demissões batendo o ponto diariamente e a massa de desempregados se ampliando.

Novamente se coloca em pauta a necessidade de reduzir a jornada de trabalho, com todos trabalhando menos, para que todos possam trabalhar. É claro que a burguesia reage a esta proposta, como reagiu quando da revolução industrial, procurando manter a jornada tradicional, a cuja exploração se agregavam a mão-de-obra sub-remunerada das mulheres e crianças e as condições de trabalho primárias e insalubres.

Uma estratégia direcionada neste sentido tem como fundamento a evidente elevação da produtividade-hora, que pode ser concretamente comprovada. Paralelamente à redução da jornada teriam de ser adotadas medidas restritivas à contratação de horas extras e ao trabalho infantil.

Considerando os desníveis político-culturais e organizativo entre os diversos países do mundo, em realidades como a do Brasil a formulação poderia ser, inicialmente, em torno de uma jornada de 40 horas semanais, que já resultaria numa ampliação dos ingressos de assalariados no mercado de trabalho.

Para viabilizar uma campanha deste teor seria necessário fugir do isolamento nacional e estabelecer uma articulação internacional, globalizando as iniciativas e a solidariedade dos assalariados. Sem esse contraponto não se consegue arrancar da internacional burguesa nenhuma vitória parcial significativa.

A jornada de 40 horas semanais teria efeitos benéficos na vida social como um todo.O principal deles seria reduzir o desemprego e as suas decorrências sociais, culturais, psicológicas e éticas.

De fins do século 19 até agora, quando a jornada de 8 horas foi arrancada da burguesia ao preço de uma brutal repressão e com o sacrifício de vidas, muito suor dos trabalhadores já passou e vem passando por baixo da ponte, convertido em super-lucros cegos, surdos e cada vez mais gulosos. E seguindo uma política de redução de danos, já é tempo de se promover um segundo grande equilíbrio entre a produtividade/hora e a jornada de trabalho no capitalismo dos nossos dias.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Dançando com as Palavras

Helena Alencar

Durante as duas semanas de ausência do escritor Antônio Guinho, que vem fazendo palestras sobre educação por todo o Estado, as Oficinas de Criação de Texto do Centro Rio Ganges foram assumidas pelo jornalista, escritor e amigo do autor de Hipopocaré, Marcelo Mário de Melo. Mudando o enfoque das aulas, Marcelo tratou de poesia, com várias leituras e o estímulo à produção de textos, ainda que não necessariamente em versos, com temas nos quais a prosa se permite fazer incursões poéticas e abrir possibilidades para a elaboração de poemas.

“Prosa é andar, prosa poética, desfilar e poesia é dançar”, definiu Marcelo em sua primeira aula, já delineando as fronteiras entre as diversas modalidades de escrita. Em suas Oficinas de Poesia, o jornalista procura desenvolver em seus alunos o gosto pela poesia a partir de um jogo de intimidade com as palavras. Aprende-se a escrever sem censura, sem medos e sem obrigações de se expor ao grupo, para, enfim, passar para um processo de escrita dentro dos “moldes” poéticos, nunca preso a técnicas ou métricas, mas permitindo às palavras se deixarem fluir, ou, como ele prefere, dançar. Essencial a qualquer escritor.

A Ideologia Vai Às Urnas

Jornal do Commercio, domingo, 6/08/00

RUMO AO VOTO
Ex-presos políticos disputam mandatos em campos opostos
Marcelo insiste no discurso ideológico, afastado por Chico.

Noite de 10 de novembro de 1989, Berlim, Alemanha. Pedra a pedra, o muro que durante mais de 40 anos dividiu o mundo foi sendo destruído e, com ele, ficou para trás um passado de cruéis lutas por ideais, responsáveis por milhões de baixas nos dois lados. Entretanto, o fim do comunismo, sepultado de vez com a queda da união soviética, em 91, pode até ter acabado, oficialmente, com a “oposição” no globo terrestre, mas não conseguiu apagar as marcas deixadas nos seus combates.

Na última eleição de um século profundamente marcado por guerras, revoluções e grandes embates ideológicos, vários candidatos fazem questão de mostrar que carregam no currículo uma historia de lutas em defesa de causas que moveram gerações. Alguns passaram anos e anos presos. Outros quase morreram por ela.

No Brasil, eles são, em sua maioria, a juventude da década de 60. Gente que cresceu inspirada na rebeldia e passou os melhores anos da sua vida tentando derrubar um regime, um sistema inteiro, em busca de liberdade e justiça social.

Com o muro no chão e o mundo passando a ser mão única, antigos revolucionários depuseram as armas e, “em Roma, resolveram andar como os romanos”, apesar de garantir que não abandonaram seus ideais. Mudaram apenas a forma de lutar. Outros, no entanto, se negam a aceitar a nova ordem e condenam a atitude dos ex-companheiros, fazendo críticas suas alianças com antigos inimigos.

É nessas condições que dois importantes militantes do Estado na luta contra a ditadura militar vão concorrer á câmara Municipal do Recife. De um lado, Francisco de Assis (PMDB), ex-secretário municipal de Políticas Sociais, um dos favoritos dentro da aliança PMDB/PFL. De outro, o jornalista Marcelo Mario de Melo, companheiro de Chico na época do partido comunista Brasileiro Revolucionário 9PCBR), dissidência criada no pcb por aqueles que defendiam a luta armada e hoje, candidato pelo PT.

Para Chico, toda a ação do passado estava dentro “de um contexto histórico”. Éramos cego para o que acontecia no bloco comunista, com Ceaucesco e Stalin, Poe exemplo. Atrocidades como as que eles cometiam, para nós só eram possíveis com Pinochet, analisa. Marcelo enxerga por outro ângulo. “Essa história de modernização seria a mesma coisa do DOI-Codi pegar a gente no DOPS e deixar de bater com pau para nos dar choque elétrico. O combate á exclusão social continua. Os excluídos de hoje são escravos reciclados e a classe dominante tem mentalidade escravocrata”.

O primeiro diz que não quer “ direita ou esquerda. Prefere ir em frente”. O segundo adverte que “ultrapassar pela direita, jamais”. Mais do que aplicação das leis do trânsito nas eleições, o discurso ideológico dos dois, cada vez mais raro na política, será um dos diferenciais da campanha desse ano e o resultado pode servir para mostrar qual é o caminho que o eleitor Recifense realmente pretende seguir. Com o sinal verde para a corrida, os dois fazem questão de frisar que, apesar de estarem em faixas diferentes, mantêm a mesma amizade e esperam, quem sabe, cruzar juntos a reta de chegada.

Chico de Assis afirma que cresceu ao lado de ex-adversários

Foram nove anos e meio atrás das grades da antiga casa de detenção, hoje casa da cultura, e da penitenciaria Barreto Campelo. Mas Francisco de Assis (PMDB) não se arrepende do passado. Ele entrou na política em 1962, embalado pela agitação provocada pela primeira eleição de Miguel Arraes ao governo do Estado. Integrante de juventude comunista do PCB, Chico foi aluno do colégio Estadual Pernambucano, onde sofreu uma grande influência dos amigos.

Com o golpe militar de 1964, ele partiu para a clandestinidade e, no dilema entre solução pacífica ou via armada, optou pelo segundo caminho e se filiou ao PCBA revolucionário, dissidência do PCB. Em 1967, caiu pela primeira vez nas mãos nas mãos da polícia, mais foi em 1970 que sua militância teve fim. Agarrado pelo Estado, de quem só conseguiu se soltar em 1979, graças á anistia, Chico de Assis hoje considera muitas das causas pelas quais lutou como “delírios”.

Quando preso, ele só não levou choque elétrico. No entanto, deixou as mágoas para trás e, anos mais tarde , integrou o grupo de militantes da esquerda que se aliaram a ex-adversários, sendo secretário de Políticas Sociais do prefeito Roberto Magalhães (PFL) por mais de três anos. “Hoje faço muito mais pelos meus objetivos do que no ano passado. Estou preocupado com a consolidação da democracia, com ética e participação. E estou muito a cavalheiro para defender Magalhães, que fez muito mais nessa área que alguns governos de esquerda, como o de Miguel Arraes. As questões ideológicas não orientam mais as alianças, afirma ele, cujo lema é “nem à esquerda, nem à direita. Em frente sempre, com ética e participação pela vitória de cidadania”.

Marcelo não aceita integrar alianças com rivais da direita

Marcelo Mario de Melo (PT) também foi do colégio Estadual Pernambucano, mas algumas turmas antes de Francisco de Assis. Aos 17 anos, assinou a ficha de filiação do PCB e começou a participar ativamente do movimento sindical, prestando solidariedade na Cuba em várias manifestações e integrando a campanha de legalidade, pela posse de João Goulart.

Sempre atuando na publicação de jornais alternativos, ele estava na passeata realizada e 1 de Abril de 1964, na avenida Dantas Barreto, contra o regime militar que se instalava, quando quatro pessoas foram mortas pelo exército. “A partir daí, fui para a ilegalidade”, conta ele, que assim como Chico de Assis, também migrou para o PCB Revolucionário. Em 1971, foi preso pela primeira vez e passou oito anos no xadrez, entre a casa de detenção e a Barreto Campelo. “Mas Chico passou um ano e mais e foi muito mais torturado”.

A principal crítica de Marcelo a seus antigos companheiros é de que, há duas décadas, a luta “não era apenas por liberdade política”. “O que acontece é que uma série de pessoas não tinha visão do social e a própria luta delas se esgotou com a anistia e a constituição de 88”. Hoje, ele acredita que é muito mais necessário “lutar pela esquerda do que antes”.

Não entende como Chico de Assis pode defender Roberto Magalhães, “o menos indicado para ser citado como exemplo de ética que pedia punição e rigor para os estudantes quando foi secretário de educação, durante a ditadura”.”Também não estou esquecido das férias que o mesmo Roberto Magalhães, arrogante, autoritário e histérico, deu ao major Ferreira, assassino de um procurador da república,” condena.

Marcelo entrevista Chico de Assis

Marcelo Melo - Como você se sente trabalhando ao lado de Roberto Magalhães, que como secretário de Educação, em 1968, perseguiu estudantes e, como governador, em 82, nomeou para a direção da Fesp o torturador Armando Samico , que, na condição de diretor do DOPS, em 1971, comandou a tortura e o assassinato do nosso companheiro Odijas Carvalho?

Chico de Assis - Sem nenhum constrangimento. O então governador Roberto Magalhães nomeou para reitor da Fesp um servidor público, professor da universidade, indicado por seus pares nas costumeiras listas preparadas em tais ocasiões. Embora verdadeiras, as denúncias que o envolviam com torturas e assassinatos estavam sendo feitas apenas por nós, os mais radicais e intransigentes adversários do seu governo. O governador não tinha como acatá-las. Minha posição sobre tortura e torturadores continua sendo a mesma de sempre: Combate sem tréguas. Só que hoje eu sei que nessa luta conto com a solidariedade do governador que primeiro aderiu á luta pelas diretas. Do deputado que presidiu a comissão contra os corruptos anões do orçamento geral da união. Do prefeito vitorioso Roberto Magalhães, de cujo secretário com muita honra participei.

Marcelo – Numa cidade tão violenta como o Recife, você acha que foi um bom exemplo para a população o prefeito Roberto Magalhães, ostentando arma na cintura e com porte ilegal, ter entrado na redação do Jornal do Commercio e ameaçado o pacífico e desarmado jornalista Orismar Rodrigues, em outubro do ano passado?

Chico – Este é um episódio absolutamente superado. O prefeito Roberto Magalhães já deu à sociedade Recifense as explicações necessárias para o seu gesto. O próprio jornalista envolvido numa demonstração de grandeza com ele já se reconciliou. Ponto final.

Marcelo – Você está satisfeito com o insignificante percentual do orçamento do município que é reservado ao programa prefeitura nos Bairros?

Chico – Satisfeitíssimo. Primeiro porque não é tão insignificante assim o percentual reservado. Segundo porque o orçamento participativo é apenas um dos instrumentos de participação. A ele se juntam o fórum do prezeis, o parceria nos morros e os conselhos municipais, entre os quais se destacam o da criança e do adolescente (Condica), que tive a honra de coordenar, e os seus correlatos conselhos tutelares. Não tenho medo de errar ao dizer que nisso tudo se investiu mais de 60% do que a administração tem para investir. Satisfeitíssimo, portanto. Não sei se você pode dizer o mesmo, por ter votado, apoiado e defendido o governo Arraes, que não desencadeou um só, umzinho apenas que fosse, mecanismo de participação.

Marcelo – Você acha que as velhas forças conservadoras representadas hoje na aliança PFL/PMDB mudaram de caráter e podem promover a justiça social no Brasil, em Pernambuco e no Recife? Dá pra tirar sangue de tapioca?

Chico - As mencionadas forças conservadoras me permitiram formar em governos orientados pela ética e participação. Aliás, este é o corte que hoje orienta minha vida política, em contraposição ao desgastado corte ideológico, que nos leva à mais desgastada ainda dicotomia entre esquerda e direita. Os dois governos que defendi e defendo são governos participativos e limpos. Mais uma vez, não sei se a experiência recente das forças de esquerda do nosso Estado permite que elas falem com essa mesma convicção.

Chico de Assis entrevista Marcelo

Chico de Assis – O prefeito Roberto Magalhães implantou o programa bolsa- escola considerando um dos mais bem sucedidos do país, além de ser cópia autêntica e assumida do implantado por Cristóvão Buarque em Brasília; quadruplicou o número de intervenções em barreiras através da parceria nos morros; manteve rigorosamente e acatou em sua ação nas áreas populares as recomendações vindas do orçamento participativo e do fórum do prezeis e realizou a eleição mais expressiva em toda a história da democracia participativa no Recife, mobilizando 27.200 recifenses, para renovação dos conselhos tutelares, pedra angular de uma efetiva e moderna política de proteção á criança e ao adolescente. Uma administração que age assim pode ser chamada de insensível ao social, centralizadora e prepotente?

Marcelo Melo – O processo de estruturação de representações como os conselhos tutelares emana da sociedade civil e não pode ser creditado ao prefeito. As intervenções nos morros se concretizaram pelo caráter paliativo. O bolsa-escola encaminhado por Cristóvão Buarque foi voltado para crianças em situação de risco ( meninos de rua ). O bolsa - escola em Recife foi voltado para os alunos da rede escolar municipal, voltando-se para a evasão escolar. Há uma diferença. As deliberações do orçamento participativo se deram sob uma reduzida fatia. O prefeito Roberto Magalhães revela a sua insensibilidade social ao figurar entre a ínfima minoria dos que são contrários ao alargamento da parte do orçamento municipal reservado à saúde. Sobre prepotência, que tal um prefeito entrar armando em redação de jornal e ameaçar jornalista?

Chico – A partir da constituição de 1988, foi-se construindo no país um verdadeiro sistema de participação social, composto pelos conselhos municipais e fóruns diversos (institucionais ou não ) , que orientam o executivo na implantação de suas políticas públicas. Em nossa cidade, esse sistema foi consolidado no governo Jarbas Vasconcelos, mantido e em alguns casos aprofundado no governo Roberto Magalhães. Você teria alguma modificação substancial a propor nesse modelo?

Marcelo – As forças conservadoras sempre procuram manipular e descaracterizar o processo de representação civil. As eleições do conselho da criança e do adolescente (Condica) eram feitas pelo processo mais simples e democrático da votação nominal, sendo escolhidos os mais votados. O secretário de políticas sociais e D. Jane Magalhães articularam a modificação do regulamento e instituíram a votação por chapa fechada, recusando até o critério proporcional, que daria direito a representação da minoria. Estas interferências é que precisam ser superadas, para que o processo democrático brasileiro avance.

Chico – O candidato do seu partido a prefeito afirmou, na recente tragédia que se abateu sobre o Recife, que o problema dos morros da cidade poderia ser resolvido em quatro anos. O candidato do PPS foi mais ou menos na mesma linha, dizendo que com pouco mais do que a prefeitura gastou em publicidade ( segundo ele, 10 milhões de reais), o problema estaria resolvido. Você não acha que se está escolhendo o caminho fácil (mas politicamente desastroso ) da leviandade e da demagogia?

Marcelo – Segundo o engenheiro Jaime Gusmão, não houve uma atenção à altura, quanto ao problema dos morros, tendo-se revelado uma piora, na administração de Roberto Magalhães. Acho que em quatro anos se pode avançar muito no enfrentamento da questão da segurança nos morros e encostas, trabalhando durante todo o ano, e não só emergencialmente.