segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Arredação Final

Marcelo Mário de Melo

Preparei toda a programação da minha futura Festa Funeral. Para quem não foi muito organizado durante a vida, pega bem dar uma compensada na preparação pós-morte. Sempre gostei de fazer festa de aniversário - uma grande oportunidade de reencontrar amigos e ganhar presentes. E rever amigos e ganhar presentes são duas coisas que deixam a gente com os olhos acesos e a cauda do coração balançando.

Há anos atrás já havia tomado esta providência, mas um vírus no computador apagou tudo. Retomo-a agora, influenciado pelo comparecimento a algumas cerimônias fúnebres. Neste ano de 2005, com 61 anos de idade, tenho a certeza de que ainda vou viver umas duas décadas e meia, ou três. Mas o fato de falar de morte atraiu uma atmosfera de morbidez. Estou me vendo no caixão, os parentes e amigos mais íntimos cumprindo com algum embaraço a programação que deixo pronta. E nessa visão já começo a sair do roteiro, pois deverei ser cremado e não haverá nenhum caixão em cena.

Disse que tenho a certeza de que vou ultrapassar os 80. Mas isto não é lá muito verdadeiro. Porque, sendo muito distraído, tenho também um medo-quase-certeza de que vou morrer de distração. Viajando nessa hipótese, fiz até o mote: Eu vou morrer distraído/olhando coisa bonita. O mote nasceu quando, um dia, ia atravessar a rua, avistei uma mulher bonita, desses tipos mulher-monumento, que levam os olhos a arrastar o pescoço. Quando arrastaram, meti a cabeça num orelhão. A mulher viu a cena e saiu rindo. Isto faz parte das minhas Histórias Ingloriosas.
Em momentos de distração, andando de bicicleta ou a pé, carros já deram freadas pesadas em cima de mim. Nos anos 1980 inventei de comprar uma moto e um dos meus amigos iniciou uma cruzada contrária entre os mais próximos, chegando até a falar com a minha mãe. “Num carro você perde um pára-lama; numa moto você perde uma perna”, foi seu convincente argumento final. Continuei pedalando e me habilitei assim a não morrer por moto. Pelo menos, sendo eu o motorista.

O fato é que sempre acho que posso morrer de distração. E, se for o caso, prefiro que seja olhando coisa bonita. O mote tem que ficar escrito na minha lápide. E novamente vou saindo da programação, porque vou ser cremado e não haverá lápide nenhuma. Mas há também a hipótese não descartável de morrer sem distração nenhuma e a curto prazo, vítima de algum assaltante ocasional e nada casual, nesses tempos de crescente marginalização pós-modernosa.
Outra coisa me preocupa. Se eu não morrer de distração nem de assalto, se não pegar uma dessas doenças tenebrosas, que fazem liquidação em curto prazo, e se chegar aos 99 anos pretendidos, a minha festa funeral poderá ser um grande fiasco por falta de público, pois muitos dos meus amigos mais chegados deverão ter sido deletados bem antes de mim. Uma amiga, dez anos mais nova do que eu, procura me tranqüilizar, dizendo que garante na festa uma representação expressiva de gatões e gatinhas de 89 anos. Bem, seja lá o que Deus quiser.

E por falar em Deus, esclareço que decidi deixar uma programação funeral amarrada, porque quero ter uma cerimônia fúnebre de ateu, sem nenhum componente religioso centralizando a festa. Mas é claro que os meus amigos religiosos, se quiserem, podem dar uma rezadinha, porque não sou um ateu rançoso e não vou fazer proibições e constranger ninguém na despedida final, sem mais a possibilidade de um posterior pedido de desculpas.

Quando adolescente, me impressionou muito uma carta fúnebre deixada pelo desembargador comunista Edmundo Jordão, de quem ganhei de presente uma bola de borracha, em Caruaru, no aniversário dos 7 ou 8 anos. Já morando no Recife, com 14 ou 15 anos, li num jornal a carta do Dr. Edmundo, dizendo assim: “renuncio a todas as cerimônias dos que nascem no seio da igreja”. Ele também determinou que o seu caixão ficasse fechado, sentenciando: “a morte tem o seu pudor”.

Sempre me incomodou, em mortes de ateus, as famílias providenciarem cerimônias religiosas, contrariando a descrença dos defuntos. Ora, a quem passou a vida como ateu, por que negar o direito a um ritual ateu depois de morto? Pensando nisto, decidi programar meu funeral, esperando que, além de ser cumprido à risca, seja muito animado e possa servir de referência a outros ateus no corredor da morte ou colhidos por ela.

Muitos só tomam conhecimento da morte de uma pessoa próxima, dias depois que ela ocorre. Outros, por alguma razão, não podem comparecer ao sepultamento, restando-lhes a missa de 7o dia. Considerando isto, programei para mim uma Festa Funeral de 7O Dia que, além de manter a sintonia com a tradição cristã predominante, terá um efeito de “repescagem” para os que faltarem ao primeiro evento.

Quando morrer, quero que o meu corpo seja imediatamente entregue à reciclagem para a extração do material reutilizável. Em seguida deverá seguir para a cremação. A festa final de despedida ocorrerá nas imediações do local em que serão lançadas as minhas cinzas. No Rio Capibaribe cumprirei a última função útil, como elemento fertilizante e comida de caranguejo. Aprofundando a linha mortuária do desembargador Edmundo Jordão, não haverá o tradicional velório, com o defunto encaixotado e exposto aos olhos públicos. Apenas uma caixinha com cinzas, ao lado de um buquê de rosas vermelhas, estará representando o morto, à espera do seu destino final.

Só desejo não morrer em época de chuva, porque programei uma festa ao ar livre. Talvez seja o caso de uma promessa pré-paga com São Pedro, para garantir o bom tempo.

Abraços, beijos, uma boa festa (aliás, duas boas festas) e até sempre!

Recife, 2005

Padre Romano: o Cristo e a Classe

Marcelo Mário de Melo

Romano Zufferey nasceu na região montanhosa da Suíça, em 1910, na cidade de Saint Luc, filho de um pai operário e tendo irmãos operários.Logo cedo se decidiu pelo sacerdócio e na sua terra atuou junto aos trabalhadores das minas.Vivia subindo e descendo montanhas e se acostumou com as escaladas e as alturas, como diz o jornalista Carlos Chaparro no belo livro que escreveu sobre a sua trajetória - Padre Romano – Profeta da Libertação Operária -, publicado pela Editora Hucitec. Assim ele adquiriu uma visão terra-a-terra e panorâmica das pessoas e das coisas, não se perdendo em detalhes e tropeços, pois o importante era a caminhada.

Chegou ao Brasil em 1962, como assistente da Ação Católica Operária – ACO, hoje Movimento dos Trabalhadores Cristãos. E por estas bandas nordestinas foi o primeiro padre a andar sem batina, depois do Concílio Vaticano II. O arcebispo lhe permitiu o paletó com a gola dura. Mas logo ele dispensou os acessórios e assumiu a manga de camisa.

Um dia escandalizou numa reunião, dizendo que era mais cristão ir à reunião do sindicato do que ir à missa. E escandalizou-se ao ver a igreja se inclinar para votar no usineiro João Cleofas de Oliveira, nas eleições para governador de Pernambuco, e não em Miguel Arraes, apoiado pelos comunistas e a esquerda. “Trata-se apenas hoje, para os cristãos, de colaborar na promoção da Justiça com aqueles que estão dispostos a realiza-la. A Justiça não é menos Justiça quando é realizada pela esquerda” – escreveu na época.

Romano rejeitava a religiosidade disseminado por patrões católicos, segundo escreveu nos seus diários em outubro de 1963. “A atividade religiosa dos patrões compromete a Igreja com o capitalismo e todas as suas injustiças. A presença da Igreja na fábrica deve ser assegurada não pelos patrões e pelos padres, mas por militantes autenticamente operários e autenticamente cristãos. Militantes que assegurem a presença da Igreja, não pregando, mas vivendo o testemunho do espírito de Jesus Cristo, em toda a sua vida entregue ao serviço dos companheiros”.

Toda a sua atuação foi no sentido de quebrar as carapaças da fé desligada da vida e trazer para o dia-a-dia o Cristo vivo, comprometido com a luta dos oprimidos e a vida com dignidade. Cristo para ele era um companheiro operário da libertação. “O que corresponde nos nossos dias ao milagre da multiplicação dos pães – dizia – é a socialização dos meios de produção.” Socialista na prédica e na prática, insistia no posicionamento de classe, dizendo que limitar-se ao “popular” era diluir a existência e a luta da classe trabalhadora. No dia 1o de Maio e no dia de Pentecostes, sempre vestia uma camisa vermelha. O Cristo e a classe eram as suas referências.

Romano achava que o movimento da Ação Católica Operária não deveria substituir ou se contrapor às representações autônomas da classe trabalhadora, mas estimular os militantes a assumir as suas responsabilidades na sociedade, segundo suas inclinações e sua consciência, dando o testemunho a partir do Ver, Julgar e Agir, método de análise herdado da Juventude Operária Católica. Um método que ele procurou enriquecer com um conteúdo socialista, recorrendo à sua vivência proletária e às contribuições da análise política, não poucas vezes, realizada com a colaboração de companheiros que não eram militantes do movimento, ou que não eram cristãos.

O Padre Romano se relacionava com as pessoas, certo de que o Espírito Santo agia, também, através das ações daqueles que não acreditavam nele, segundo me disse um dia. Respondi-lhe que isto era uma apropriação indébita dos direitos autorais dos ateus. Ele riu. Um dia, cheguei na sede da ACO e lhe disse que tinha lido do poeta Sergio Lima um bem humorado poeminha ateu. Ele me pediu para dizer e o fiz: “Acho que Deus é materialista. /Ele não acredita/que eu existo”. Romano riu gostosamente, dizendo com o sotaque francês: “muito engraçado, muito engraçado”. A dimensão do humor e o riso largo também faziam parte do seu jeito de ser, acompanhando o vigoroso aperto de mão e os olhos vivos e curtidores, ao levantar a taça e fazer brindes, dizendo: salut!

Em 1964 Romano foi detido na Secretaria de Segurança, junto a militantes da ACO. Em 1977 respondeu a um processo de expulsão que teve repercussão nacional e internacional e terminou sendo arquivado. Contou com o firme apoio de D. Helder Câmara, que embora não tivesse as posições políticas da ACO, claramente de esquerda, socialista e comprometida “com todas as lutas e formas de luta” que os trabalhadores assumissem ou viessem a assumir nas suas entidades autônomas, respeitou a sua autonomia e lhe prestou solidariedade, sempre que as malhas repressivas a ameaçaram.

“Deixemos ao fermento o tempo necessário para penetrar a massa, e ao grão, o tempo de morrer e fazer brotar a planta com doçura”- escreveu o Padre Romano. Ele morreu em fevereiro de 1985, aos 72 anos de idade, atacado por insuficiência respiratória, e teve realizado o seu desejo de ser sepultado em terra brasileira.

Na missa de 7o dia, D. Helder disse: “Romano precisa ser continuado. Nós não podemos ficar só na saudade. A saudade verdadeira é aquela que nos impulsionará para não deixar que caia o esforço da classe operária.(...) Ao comemorarmos a memória do Padre Romano, nós, a Igreja do Cristo do Nordeste, como também a Igreja do Cristo do Brasil, assumimos novamente o compromisso de não abandonar a classe trabalhadora, de sofrer com ela o que for preciso. De nos alegrarmos com suas vitórias, mas, sobretudo, de estarmos juntos, unidos, irmãos, nas horas difíceis, nas lutas que não haverão de faltar.”

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

domingo, 21 de setembro de 2008

Sonho, Saga e Amor de Apolônio de Carvalho

Marcelo Mário de Melo

No dia 29 de outubro Apolônio de Carvalho, 85 anos, autor do livro de memória “Vale a Pena Sonhar”, editado pela Rocco, estará participando de festa de lançamento na livraria Quinta do Livro. Com prefácio de Antônio Cândido e pós-facio de Silvana Goulart, o livro traça uma trajetória militante que começa nos anos 30, enfrentando a ditadura Vargas, passa pela Espanha, na luta dos republicanos contra o franquismo, chega à França, na resistência ao nazi-fascismo, retoma ao Brasil e continua a saga até os dias atuais.

Personagem internacional, Apolônio de Carvalho, oficial de artilahria, teve a patente cassada em 1936 e foi preso, convivendo na prisão com figuras como Graciliano Ramos e Apparyccio Torelly, o famoso Barão de Itraré. Libertado, sai do país e se torna comandante militar na guerra civil espanhola, lutando ao lado da república contra as tropas franquistas. Na resistência francesa, combatendo o nazi-fascismo, foi o responsável militar pela região sudeste e comandante da zona sul, sediada em Lyon. Comandou a libertação de Carmaux e Albi e Toulouse.

No Brasil, Apolônio foi presidente da União da Juventude Comunista, cassada em 1947, antecipando a cassação do PCB. Quando houve o golpe militar de 1964, Apolônio compunha o Comitê Central do PCB. Integrando a chamada Corrente Revolucionária do partido, participou da fundação do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, em 1968, sendo o seu primeiro secretário geral.
Em 1970, aos 58 anos, foi preso, resistiu à prisão e teve um comportamento heróico ante às torturas, desmoralizando os torturadores e impondo o respeito nos porões da repressão. Seis meses depois de preso, Apolônio de Carvalho foi trocado, junto a outros presos políticos, pelo embaixador alemão, seqüestrado por uma organização revolucionária brasileira. Seguiu para a Argélia e, daí, radicou-se na França.Retornando ao Brasil em 1979, Apolônio participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e foi eleito seu vice-presidente. Por recomendação médica, afastou-se da direção do PT em 1985.

É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.

As memórias de Apolônio de Carvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitui uma difícil eqüidistância entre o tom bombástico e apologético das “testemunhasde Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.

Amor nas trincheiras - Na introdução do seu livro, Apolônio diz que não agradece a Renné, sua companheira, porque o livro é, também, a sua história. Eles se conheceram em 1942. Pertencendo a uma família de comunistas franceses, Rennée já tinha uma irmã e uma tia na prisão. Com atuação na Juventude Comunista, integrou-se na resistência ao nazi-fascismo, conhecendo Apolônio. Os dois passaram a atuar juntos. Ele, como comandante militar. Ela, participando de operações e no transporte de explosivos.
Entre tocaias e tiros o amor floresceu e o casal se firmou, escrevendo uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular. O primeiro filho, René-Louis, nasceu na França em dezembro de 1944, ainda em tempo de refrega e de fogo. O segundo, Raul, nasceu no Brasil em fevereiro de 1947. E logo depois a família teve de viver na clandestinidade, com a cassação do registro legal do PCB e a perseguição aos comunistas.

A parceria revolucionária com a mulher se estendeu aos dois filhos, que passaram a atuar como militantes e terminaram presos, em fevereiro de 1970, durante a ditadura militar. Renné-Louis foi trocado, em janeiro de 1971, pelo embaixador suíço seqüestrado. Raul foi libertado em setembro de 1973.

Rennée e Apolônio Vivem no Rio e estarão juntos no lançamento, em Recife, do “Vale a Pena Sonhar”. Para Apolônio será um retorno, pois ele já esteve aqui, antes de 1964, ministrando cursos de marxismo. Como dirigente do PT, também participou de reuniões nesta capital, na década de 80.
Press Release, Recife, 1977

Os Roteiros de Apolônio de Carvalho

Marcelo Mário de Melo

O livro de memórias de Apolônio de Carvalho, Vale a Pena Sonhar, representando mais uma contribuição à avaliação da prática da esquerda de inspiração socialista, trás o interesse especial da sua abrangência histórico-política, pois o autor, personagem central da narrativa, não teve uma atuação limitada ao território brasileiro.
Tenente em 1936, Apolônio se liga à Aliança Nacional Libertadora, é preso e tem a patente casada. Depois de cerca de um ano entre a Casa de Detenção e a Casa de Correção, no Rio de Janeiro, sendo companheiro de cela de Graciliano Ramos e Apparicio Torelly, o Barão de Itaraé, é libertado e segue para Espanha, integrando-se nas Brigadas Internacionais, que ao lado da república, combatiam as tropas franquistas. Como oficial de artilharia, Apolônio exercer funções de comando até a derrota final das forças republicanas.
Num momento seguinte ele foge de um campo de refugiados, na França, e se integra à resistência contra o nazi-fascismo, destacando-se como responsável militar da região sudeste e comandante da zona sul. Sob seu comando se deram as libertações de Carmaux e Albi e Toulousse.

No Brasil Apolônio foi presidente da União da Juventude Comunsita, loogo fechada, seguindo-se a cassação do registro do PC, EM 1947. Vive um novo ciclo de clandestinidade,passando à semilegalida, iniciada na “era JK” e encerrada com o bolpe de 1964. Nos idos do golpe ele é membro do comitê central do PC, articula-se na chamada “Corrente Revolucionária” do partido, participa da fundação do PCBR – Prtido Comunista Brasileiro Revolucionário e é eleito o seu secretário-geral, em 1968.
Em 1970, aos 58 anos, é preso, resiste à prisão e às torturas, impondo o respeito nos porões da repressão. Meses depois, juntamente com um grupo de presos políticos, é trocado pelo embaixador alemão seqüestrado por uma organização revolucionária, seguindo num vôo para a Argélia e se transferindo para a França. Na volta ao exílio, Apolônio se incorpora á formação do Partido dos Trabalhadores e é eleito seu vice-presidente. Em 1985, por recomendação médica, afasta-se da direção do PT.

É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.

O Vale a Pena Sonhar sugere vários roteiros. Um deles é o da história de amor entre Apolônio e Rennée, sua companheira, pertencente a uma família de comunistas franceses, atuante na juventude comunista e na resistência ao nazi-fascismo. Eles se conheceram dm 1942, connstruiram um amor nas trincheiras, firmaram-se como casal, tiveram o primeiro filho durante a segunda guerra mundial e escreveram uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular.

As memórias de Apolônio de Crvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitue uma difícil linha divisória entre o tom bombástico e apologético das “testemunhasde Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.

Diário de Pernambuco, Recife, 1997

A Hora e a Vez da Economia da Cultura

Marcelo Mário de Melo

Os estudos sobre a economia da cultura tiveram início nos Estados Unidos nos anos 1960. Na década de 1970 a Unesco convocou os seus membros a produzirem estatísticas sobre cultura e a França foi um dos primeiros países a tomar a iniciativa. No Brasil, o primeiro grande estudo sobre o assunto surgiu com Celso Furtado á frente do ministério da Cultura, que encomendou pesquisa ao Instituto João Pinheiro dando conta do peso da cultura no Produto Interno Bruto e na balança comercial.

Na pré-história dos estudos e dos debates sobre a economia da cultura no Brasil, vale ressaltar a cobrança por eles nos encontros e documentos culturais de Pernambuco a partir de 1985, ao lado da reivindicação do Cadastro Cultural do Estado. Nas perdas e ganhos assinale-se, na gestão de Nailton Santos á frente da Sudene, durante do Gpoverno Sarney, no ano de 1977. a constituição do Grupo de Política Cultural - GPC, coordenado por Janice Japiassu, que promoveu a realização do I Encontro Nordestino de Política Cultural, em cujas resoluções se colocava a necessidade dos estudos de economia da cultura. Com a eleição de Collor, o GPC foi deletado e tudo voltou a estaca zero.

No Governo de Miguel Arraes (1989-90), com Tarcísio Pereira á frente da Fundarpe, o poeta-sociólogo Alberto da Cunha Melo coordenou a pesquisa de campo do projeto-piloto do Cadastro Cultural de Pernambuco no município de Caruaru, extensiva á área rural e incluindo um item sobre a participação da atividade cultural na renda familiar, sendo cadastrados em torno de 1.400 produtores culturais da cidade e dos sítios. Esse trabalho foi abandonado pelo governo seguinte e nunca mais sendo retomado, inclusive, nas duas posteriores gestões de Arraes. Na década de 90 também foram realizados o Censo Cultural do Ceará (1992), o Guia da Produção Cultural da Cidade do Rio de Janeiro (1993) e o Guia Cultural da Bahia (1998), indicando apenas equipamentos culturais disponíveis, calendário de eventos e lista de produtores culturais nos diversos segmentos, sem nenhuma informação de caráter ecionõmico.O Cadastro Cultural do Recife, elaborado em 2004, seguiu esse modelo.

Parcerias e produtos - Mas como planta insistente brotando no concreto, a questão da economia da cultura foi avançando no Brasil, com o estímulo das correntes internas e sob a influencia decisiva dos encontros e resoluções da Unesco, que colocaram em pauta a questão do desenvolvimento cultural e a necessidade de se elaborarem os indicadores de desenvolvimento relacionados á cultura. O passo importante neste sentido foi a realização em agosto de 2002, na Fundação Joaquim Nabuco, do Seminário Internacional sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento – Uma base de Dados para a Cultura.

O documento A Imaginação a Serviço do Brasil – Programa de Políticas Públicas de Cultura, do qual sou signatário, que serviu de inspiração ao Governo Lula e é assumidamente marcado pelo pelas diretrizes constantes do Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da Unesco, possui no arrazoado um item denominado Cultura como ativo econômico. E nas propostas, no título Economia da Cultura, está inscrito: “implementar, juntamente com o IBGE, IPEA, secretarias estaduais e municipais de cultura, instituições culturais, associações e sindicatos, uma Rede de Informações Culturais voltadas para a produção sistemática de dados culturais (censo cultural, dados estatísticos e constituição de um banco de dados integrado que de suporte á ação do Estado, da sociedade e do mercado”.

A primeira conseqüência desse alinhamento político-cultural foi a assinatura, EM 2004, do Convenio entre o Ministério da Cultura, o IBGE e o IPEA, retomando o trabalho do Seminário de 2002, inclusive com a mesma equipe, para gerar informações relacionadas ao setor cultural, construir indicadores, culturais, fomentar estudos, pesquisas e publicações. O resultado concreto foi o Sistema de Informações e Indicadores Culturais, publicado em finais de 2006, que está disponível nos sites do IBGE e do Ministério da Cultura, podendo também ser adquirido em CD-ROOM

O que é a coisa - As informações culturais foram construídas a partir do cruzamento de dados recolhidos em pesquisas já realizadas pelo IBGE: Censo Demográfico, Amostra de Domicílios, Economia Informal, Orçamentos Familiares, Padrões de Vida, Pesquisa Mensal de Emprego, Informações Básicas Municipais, Cadastro Central de Empresas, Pesquisas Anuais Serviços, Industrial-Empresa e Industrial-Produto.

Foram estudados os segmentos culturais para os quais não há nenhuma duvida sobre o seu enquadramento no guarda-chuva da cultura, como edição de livros, jornais, revistas e periódicos; rádio, televisão, teatro, música, bibliotecas, arquivos, museus, atrimônio histórico. Compondo uma “zona cinza”, segundo declarou a pesquisadora do IBGE Cristina Pereira de Carvalho Lins, no Seminário Internacional de Economia da Cutura realizado na Fundação Joaquim Nabuco no ano passado, foram incluídas “as atividades de comércio atacadista de equipamentos de informática e de telecomunicações, atividades de processamento de dados etc, para as quais nem sempre está explícita a associação com o setor cultural”

Vale salientar a importância da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Municipal, realizada em 1999 e 2001, voltada para a identificação e a quantificação dos equipamentos culturais, considerando 17 tipos: biblioteca pública, museus, teatros ou salas de espetáculo, cinemas, clubes e associações recreativas, estádio ou ginásio poliesportivo, banda de música, orquestra, vídeo-locadora, livraria, loja de discos, CDs e fitas, shopping-center, estações de rádio AM e FM, unidades de ensino superior, geradora de TV e provedor de internet.

Além das leis de incentivo - Paralelamente ao domínio das informações e ao estabelecimento de indicadores específicos, a discussão cultural começa a sair do beco estreito das leis de incentivo e do marketing cultural. Internacionalmente se coloca em questão as potencialidades da economia criativa como fator de desenvolvimento, em relação com a sustentabilidade, e a criação de ambientes favoráveis á expressividade, á informação e á difusão da cultura. E no país se realizam inúmeros estudos e pesquisas sobre cadeias produtivas na área da cultura, merecendo destaque o trabalho de Luiz Carlos Prestes Filho sobre a música no Rio de Janeiro. Aqui em Pernambuco, no rol mais recente das perdas e ganhos, pesquisa sobre o mesmo item, coordenada pelo Centro Josué de Castro, foi interrompida por falta de recursos. Mas no contraponto, a Fundação Joaquim Nabuco realizou um Seminário Internacional sobre Economia da Cultura, cujas palestras estão disponíveis no seu site, e que vai gerar livro e DVD. E também deu início ao curso de pós-gradução em Economia da Cultura, em parceria com a UFRS.

Tudo isto vem colocar a necessidade de se reformularem as políticas culturais, que devem ser tratadas como políticas de estado. Que rompam com a visão segmentada, individualista, eventualista e marcada pelas urgências do “balcão de atendimento, a critério do arbítrio todo-poderoso dos gestores. Que incorporem a ótica das cadeias produtivas. Que estabeleçam as responsabilidades específicas do Município, do Estado e da União, a exemplo do que ocorre nas áreas da Educação e da Saúde. Que formulem qual o perfil da rede de equipamentos básicos de cultura sob a responsabilidade de cada uma das instâncias federativas. Que estabeleça planos a longo prazo para que essa rede básica seja implementada.

Embora se constatem avanços, o Brasil ainda continua sob o império das leis de incentivo e do marketing cultural, tomados como os centros da questão econômica. Sem se considerar a importância indutora do Estado no processo econômico, e não somente indutora, se considerarmos que o MEC realiza o maior programa de compra de livros didáticos (e não só didáticos) do mundo, sendo o principal comprador e sustentáculo da indústria do livro. Considere-se também que formar mercado, no que diz respeito á economia da cultua, significa formar platéias, facilitar o acesso a bens culturais, a expressividade artística das comunidades, o amadorismo e os programas de formação no segmento. O que remete para a interligação entre educação e cultura e a necessidade de manter uma rede de equipamentos culturais públicos.

Mas apesar dos novos conhecimentos estatísticos, as políticas culturais ainda continuam marcadas pelos recursos orçamentários despendidos, majoritariamente, no calendário de eventos., e não na rede de equipamentos bascos. Para checar, basta tomar como exemplo a Prefeitura mais próxima.
Publicado na revista Continente Multicultural, PE, 2007

Inversão de Prioridades

Marcelo Mário de Melo

“Resgate” chegou e nunca mais saiu da moda, passando a fazer parte dos apetrechos básicos dos ativistas da casa grande e da senzala, assim como a agenda, a caneta e o telefone celular. “Empreendedorismo”, “protagonismo”, “holístico” e “sinergia” já têm os seus lugares garantidos. Agora, “ inversão de prioridades” também procura ocupar uma cadeira central nos salões da fala, olhando para “empoderamento”, situado algumas filas atrás. Preocupado em que não se use o seu santo nome em vão, teço aqui algumas considerações sobre o sentido exato da expressão “inversão de prioridades”, temendo a sua utilização meramente retórica.

Inversão, no contexto da discussão política, significa o oposto, o contrário. Prioridade, segundo o Dicionário Aurélio, quer dizer “qualidade do que está em primeiro lugar ou do que aparece primeiro, primazia”.Dar prioridade a uma coisa é, simplesmente, fazer mais por ela e colocá-la na frente.Mas inverter prioridade significa ir além disto. É fazer muito mais, ou o contrário do que se vinha fazendo.É dar uma virada total. E como estamos tratando de uma inversão de prioridades no uso da máquina estatal e na gerência de políticas públicas, é interessante procurar decompor o conceito nas suas partes constitutivas, como se abríssemos o saco para verificar o que existe dentro. Mãos à obra, portanto.

Vamos estabelecer que, em termos de ação governamental, dar prioridade a uma coisa é dedicar a ela muito mais tempo e recursos - financeiros, materiais e humanos. A partir daí, e considerando que a prática é o critério da verdade, podemos concluir que, quem agir assim, estará fazendo inversão de prioridade, e quem não o fizer, não estará. Como se vê, a inversão de prioridades, como diretiva para uso imediato, é gulosa, radical e sem meio termo.

Para quem se sentir surpreendido e acuado por tal radicalidade, há uma opção: deslocar a inversão de prioridades do campo da ação executiva imediata para o território mais longínquo do objetivo a ser atingido. Aí então, respira-se com mais tranqüilidade o tradicional e se pode conduzir o barco, com remadas leves, para o horizonte da inversão das prioridades, a ser atingido um dia. Fica presente o risco assinalado nos versos do poeta Ângelo Monteiro: “O amanhã não é terça, não é quarta, não é quinta: é uma aurora sempre extint...

A relativização do conceito obriga a que se o veja em processo, sujeito a fases, que estabelecem marcos na trajetória.Três delas podem ser identificadas.

1 – Meação de prioridades – É quando se investe tempo, recursos materiais e humanos no novo, numa proporção de 50%. Caracteriza o conservadorismo progressista, uma vez que, embora se alarguem os investimentos no que deve ser invertido, dá-se um tratamento igualitário ao atraso e ao progresso, mantendo estacionária a gangorra.


2 – Inclinação de prioridades – É quando se aplica até 70% no novo, mantendo-se, ainda, 30% de investimentos no velho. Caracteriza o progressismo moderado, porque já se conseguiu inclinar a gangorra no sentido da inversão, mas ainda se faz ao lugar comum, percentualmente, uma significativa concessão.

3 – Inversão de Prioridades – É quando se consegue investir quase 100% no novo, encostando a gangorra no solo e deixando com as pernas penduradas no alto o pólo do atraso. Caracteriza o progressismo autêntico, radical ,literal, substantivo e, portanto, sem necessidade de adjetivos.

Para aqueles que tomam a inversão de prioridades como objetivo distante, é importante situar precisamente, no tempo, as três fases do processo – a meação, a inclinação e a inversão - , para que elas possam ser trilhadas e concluídas nos prazo pretendidos. Sem isto, pode-se cair na situação retratada na música de Chico Buarque: “ ...o tempo passou na janela e só Carolina não viu”






Lula: anseio do povo

Marcelo Mário de Melo

Em artigo publicado no Jornal do Commércio há cerca de dois anos, sob o título de “À Esquerda e em Frente”, fiz a defesa da quarta rodada com Lula nas eleições presidenciais de 2002. Na época, havia sido encampada pelo PPS, com dose elevada de carbureto, a candidatura de Ciro Gomes, já em vôo eleitoral autônomo. De lá até agora, muita água passou pela ponte. José Serra foi oficializado como candidato a presidente. Surgiu a candidatura de Antony Garotinho. O poder judiciário impôs a verticalização das alianças políticas. Foi detonada a candidatura de Roseana Sarney, levando à ruptura entre o PFL e o PSDB. E Lula passou a candidato preferencial do povo brasileiro, ultrapassando os 40% de preferência nas pesquisas e atraindo segmentos que se apresentavam resistentes.

Os dois elementos mais importantes na conjuntura política, evidentemente, foram a verticalização e a briga de família entre o PFL e o PSDB, que conseguiu ser mais atritada do que racha da esquerda. Ficaram na cabeça do povo brasileiro as imagens dos pacotes de dinheiro flagrados no escritório de Roseana e do marido Murad, com transmissão via satélite e ocupando as primeiras páginas dos jornais. Imagens que respingam na candidatura de Serra ou de qualquer outro candidato oficial, uma vez que, na consciência popular, a briga PSDB-PFL é traduzida como “briga de bandido”. Isto, associado à exaustão civil diante da dose dupla de Fernando Henrique Cardoso, favoreceu o crescimento da candidatura de Lula, alimentada, também, pela habilidade das suas intervenções e da sua propaganda televisiva.

Tem uma verticalização no meio do caminho, pedindo à esquerda que a decifre ou se devore. Não seria mais o caso de se exercitar o automatismo característico da realidade política anterior, com todos os partidos lançando, no primeiro turno, candidatos a governador e a presidente e conduzindo à parte as candidaturas proporcionais. Mas seria, mas foi, ao custo de uma drástica redução da representação de esquerda no parlamento, em todos os níveis, considerando-se os votos necessários para uma legenda eleger um deputado estadual e um federal. É só fazer as contas.

Os argumentos que sustentavam a candidatura de Ciro Gomes, emitidos pelo senador Roberto Freyre, eram de que Lula não conseguiria articular as forças de centro-esquerda, não ultrapassaria o patamar dos 30 % e, por isto, era o candidato desejado pela direita. Em síntese: uma verdadeira candidatura pé-na-cova. Mesmo há dois anos atrás, e admitindo-se a veracidade desse perfil cinzento de Lula, pintado pelos pinceis de Roberto Freyre, seria difícil admitir Ciro Gomes como alternativa. A não ser no terreno da ficção, num caso de hidroponia política. Ou nos embalos do puro marketing, afeito à fabricação de factóides. Carente de enraizamento democrático, e como não se tira sangue de tapioca, Ciro restou estacionado na linha do quebra-mar, onde se banham os garotinhos, com um olho ansioso catando apoios à direita e o outro vendo Lula avançar nas águas profundas.

A candidatura de Lula está aí como o sol, que não precisa de outdoor. Cresce no protesto, no investimento e na esperança dos pobres e excluídos do Brasil, da classe média estrangulada e, inclusive, dos segmentos empresariais menos banqueirosos e mais racionais, convencidos de que o programa econômico do PT não questiona o capitalismo e poderá ser melhor para todos. Apesar do pedigree de esquerda do PT - para o pudor de uns e o protesto de outros - trata-se de um autêntico programa de centro-esquerda, com muitos pontos de semelhança com o de Ciro Gomes. A diferença consiste menos na proposta esquemática e mais na credibilidade do candidato, sua história, suas raízes e bases de sustentação, que dão substância à esperança de um esforço real para cumprir com os compromissos.

Ora, mas se Lula apresenta um programa de centro-esquerda e ultrapassa os 40%, na preferência popular; se a direita está dividida e tem um candidato desatraente e estigmatizado; se a exigência da verticalização impõe mais unidade; se o povo brasileiro está exausto e ansioso por uma luz no fim do túnel; se Lula simboliza este anseio, o que está faltando para a unidade da esquerda, logo no primeiro turno destas eleições? Nos aspectos programáticos e táticos, o que poderá justificar a fuga dessa tarefa, principalmente, entre as forças políticas que já vinham apoiando Lula em primeiros turnos de eleições anteriores? E em tais circunstâncias, o que legitima as candidaturas de Ciro Gomes e Antony Garotinho?

Independentemente das maquinações partidárias, dos escritórios políticos e dos trique-triques dos caciques, o povo brasileiro já definiu, na base, a unidade em torno de Lula. A candidatura de Lula é o fato novo e requer a adesão das forças de esquerda e centro-esquerda, a exemplo do que fizeram em Pernambuco, em sintonia com o sentimento popular, figuras como Pelópidas Silveira, Fernando Lyra e Miguel Batista. É preciso engrossar cada vez mais esse caldo para uma vitória com Lula no primeiro turno, pois é neste momento que as forças da direita estarão mais divididas e fragilizadas, face às disputas nos estados em torno das candidaturas a governador, senador e deputados estadual e federal.

Ganhar no primeiro turno com Lula é o mote do momento. Vamos a ele.
Artigo divulgado pela internet