domingo, 7 de setembro de 2008

O Tribuno Francisco Julião

Marcelo Mário de Melo
Metida tenho a mão na consciência
e não falo senão verdades puras
que me ditou a viva experiência”
(Camões)

Vi muitos oradores discursando em comícios no Recife, dando bem o seu recado e arrancando aplausos. Mas o único que vi levar a multidão às ovações, foi Francisco Julião. Sem citar estatísticas, contornando os chavões do economês. e as referências a documentos políticos e autores. Advogado de júri ele dominava a técnica oratória. Tinha uma boa voz, com a pronúncia marcada por toques de português castiço - a elegância antiga de acentuar o l no final das palavras e o uso do apóstrofe. Num comício no dia do seu aniversário, disse que estava completando cinquent’anos. Quando se referia a João Goulart, pronunciava nitidamente o t.

Menino de engenho, Julião conhecia profundamente os ciclos de vida do camponês sob o jugo do latifundio - da infância à velhice, do nascimento à morte. Sobre isto falava com familiaridade, colocando os dedos nas feridas, expressando-se com a radicalidade de quem planta uma semente ou arranca uma erva daninha. Suas falas tinham o efeito de janelas se abrindo e mostrando pedaços de uma paisagem doída. Os seus textos de agitação também apresentavam essa marca. Como exemplos, o Guia do Camponês, a Cartilha do Camponês, o Bença Mãe e os artigos que escrevia para o jornal A Liga.

Julião era autor de textos literários. Em 1951, com prefácio de Gilberto Freyre, publicou Cachaça, histórias em torno da presença da aguardente no cotidiano rural. Em 1958, também com prefácio de Freyre, publicou Irmão Juazeiro, uma seqüência encadeada de histórias camponesas. Além disso, escrevia versos em estilo de cordel. A influência e o domínio das formas literárias se faziam sentir fortemente na retórica de Julião, transmitindo à sua agitação oral e escrita um tocante e vigoroso encantamento poético.

Em 1960, na campanha presidêncial, a esquerda, já rompida com o governador Cid Sampaio, que apoiara nas eleições de 1958, defendia as candidaturas do Marechal Teixeira Lott, tendo como vice João Goulart. A direita alinhava-se com Jânio Quadros e Miltom Campos. Em comício na Av. Dantas Barreto, Julião começou a desancar os latifundiários e usineiros, tomando Cid Sampaio como exemplo. Disse que, quando jovem, o governador remava num clube de regatas e, sendo de pequena estatura e com braços curtos, constantemente era solicitado pelos companheiros de barco a alongar a remada, a fim de não retardar o grupo. A sua resposta era que os remadores se subordinassem ao seu ritmo.A partir daí, Julião começou a fazer considerações sobre a mentalidade individualista dos usineiros e do governador, e terminou neste rasgo oratório: “Pernambuco não pode ser dirigido politicamente por um governador de remada curta!”.

Em 1962, na campanha para governador e deputados, Julião fala num comício na Pracinha do Diário. Diz que, desde menino, o camponês começa a trabalhar como cambiteiro na palha da cana, acumulando calos amarelos nas mãos e contribuindo para multiplicar moedas amarelas nas mãos do latifundiário. O menino vai crescendo, torna-se rapaz, tem filhos que vê seguirem o mesmo destino que o seu, e filhas que, muitas vezes, caídas na prostituição, vendem o corpo por moedas amarelas. Julião ressaltava, de um lado, os calos amarelos se cristalizando nas mãos, e do outro, a montanha de moedas amarelas cada vez mais se agigantando. O adulto envelhece precocemente ou adoece, tornando-se incapaz para o trabalho - continua ele - e no final o seu destino é acabar os dias num pé de ponte ou numa feira, estendendo a mão cheia de calos amarelinhos para receber nela uma moeda amarelinha.

Em 1962 barcos franceses começam a pescar lagosta invadindo as águas territoriais brasileiras na costa de Pernambuco, num ensaio de contenda que foi denominado de A Guerra da Lagosta. A marinha de prontidão, fazendo patrulhamento. Julião, que andava se articulando entre os pescadores, promove um comício na Esquina da Sertã, em frente ao Trianon, onde denuncia que, depois de dominarem a indústria, o comércio, as finanças e a terra, os imperialistas, agora, querem também dominar as riquezas que temos nas águas. Diz que um dos seus filhos, estudante em Cuba ( abre um parênteses e fala das reformas sociais empreendidas pela revolução cubana), depois de fazer uma prova de geografia, lhe escreveu uma carta falando das riquezas do mar. E começa a falar delas. A areia monazítica, o petróleo, os peixes, a lagosta que os barcos franceses estão roubando. Arremete conta a exploração que os pescadores sofrem por parte dos donos de barco, dos frigoríficos, e fazendo uma aproximação entre a agricultura e a pesca, declama emocionando a multidão: o pescador é o camponês que tira do mar o peixe”.

Nesse mesmo comício, protestando contra a campanha sistemática que a revista O Cruzeiro mantinha contra ele e as Ligas Camponesas, Julião qualifica-a como um órgão vendido ao imperialismo e diz que, por essa razão, deveria ser chamada de O Dolar. Passa a denunciar o tratamento semelhante que lhe dispensa o Diário de Pernambuco, a quem acusa de ser um jornal tradicionalmente vinculado ao poder econômico, que na campanha da abolição, ao lado dos escravocratas, chamava Joaquim Nabuco de carbonário e anarquista. Vai acirrando os ânimos contra o jornal e, num determinado momento, convoca: “Nós precisamos dar uma resposta enérgica a esse jornal”. Faz uma pausa. “Vamos agora tocar fogo no Diário de Pernambuco” - conclui. Nova pausa.Parcelas da multidão começam a se deslocar para atender ao apelo. Mas do alto do palanque Julião sentencia: “Não, companheiros. Não vamos sujar nossas mãos. Vamos tocar fogo simbolicamente no Diário de Pernambuco”. Em seguida acende um isqueiro, ergue um exemplar do jornal e nele toca fogo, sob os aplausos e o delírio da multidão.

Tachado de agitador, Julião incorporou o qualificativo, dizendo-se um agitador social e fazendo a defesa poética.“Agitador social, sim! Como é possível conceber a vida sem agitação? Porque o vento agita a planta, o pólen se une ao pólen de onde nasce o fruto e se abotoa a espiga que amadurece nas serras. O gameto masculino busca o óvulo porque há uma cauda que o agita. Se o coração não se agita, o sangue não circula e a vida se apaga. Que dizer da bandeira que se hasteia ao mastro e não se agita? É uma bandeira morta. (...) É agitando que se transforma a vida, o homem, a sociedade, o mundo. Quem nega a agitação nega as leis da natureza, a dialética, a ciência, a justiça, a verdade, a si próprio”.

Assim foi o tribuno Francisco Julião.








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