segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Padre Romano: o Cristo e a Classe

Marcelo Mário de Melo

Romano Zufferey nasceu na região montanhosa da Suíça, em 1910, na cidade de Saint Luc, filho de um pai operário e tendo irmãos operários.Logo cedo se decidiu pelo sacerdócio e na sua terra atuou junto aos trabalhadores das minas.Vivia subindo e descendo montanhas e se acostumou com as escaladas e as alturas, como diz o jornalista Carlos Chaparro no belo livro que escreveu sobre a sua trajetória - Padre Romano – Profeta da Libertação Operária -, publicado pela Editora Hucitec. Assim ele adquiriu uma visão terra-a-terra e panorâmica das pessoas e das coisas, não se perdendo em detalhes e tropeços, pois o importante era a caminhada.

Chegou ao Brasil em 1962, como assistente da Ação Católica Operária – ACO, hoje Movimento dos Trabalhadores Cristãos. E por estas bandas nordestinas foi o primeiro padre a andar sem batina, depois do Concílio Vaticano II. O arcebispo lhe permitiu o paletó com a gola dura. Mas logo ele dispensou os acessórios e assumiu a manga de camisa.

Um dia escandalizou numa reunião, dizendo que era mais cristão ir à reunião do sindicato do que ir à missa. E escandalizou-se ao ver a igreja se inclinar para votar no usineiro João Cleofas de Oliveira, nas eleições para governador de Pernambuco, e não em Miguel Arraes, apoiado pelos comunistas e a esquerda. “Trata-se apenas hoje, para os cristãos, de colaborar na promoção da Justiça com aqueles que estão dispostos a realiza-la. A Justiça não é menos Justiça quando é realizada pela esquerda” – escreveu na época.

Romano rejeitava a religiosidade disseminado por patrões católicos, segundo escreveu nos seus diários em outubro de 1963. “A atividade religiosa dos patrões compromete a Igreja com o capitalismo e todas as suas injustiças. A presença da Igreja na fábrica deve ser assegurada não pelos patrões e pelos padres, mas por militantes autenticamente operários e autenticamente cristãos. Militantes que assegurem a presença da Igreja, não pregando, mas vivendo o testemunho do espírito de Jesus Cristo, em toda a sua vida entregue ao serviço dos companheiros”.

Toda a sua atuação foi no sentido de quebrar as carapaças da fé desligada da vida e trazer para o dia-a-dia o Cristo vivo, comprometido com a luta dos oprimidos e a vida com dignidade. Cristo para ele era um companheiro operário da libertação. “O que corresponde nos nossos dias ao milagre da multiplicação dos pães – dizia – é a socialização dos meios de produção.” Socialista na prédica e na prática, insistia no posicionamento de classe, dizendo que limitar-se ao “popular” era diluir a existência e a luta da classe trabalhadora. No dia 1o de Maio e no dia de Pentecostes, sempre vestia uma camisa vermelha. O Cristo e a classe eram as suas referências.

Romano achava que o movimento da Ação Católica Operária não deveria substituir ou se contrapor às representações autônomas da classe trabalhadora, mas estimular os militantes a assumir as suas responsabilidades na sociedade, segundo suas inclinações e sua consciência, dando o testemunho a partir do Ver, Julgar e Agir, método de análise herdado da Juventude Operária Católica. Um método que ele procurou enriquecer com um conteúdo socialista, recorrendo à sua vivência proletária e às contribuições da análise política, não poucas vezes, realizada com a colaboração de companheiros que não eram militantes do movimento, ou que não eram cristãos.

O Padre Romano se relacionava com as pessoas, certo de que o Espírito Santo agia, também, através das ações daqueles que não acreditavam nele, segundo me disse um dia. Respondi-lhe que isto era uma apropriação indébita dos direitos autorais dos ateus. Ele riu. Um dia, cheguei na sede da ACO e lhe disse que tinha lido do poeta Sergio Lima um bem humorado poeminha ateu. Ele me pediu para dizer e o fiz: “Acho que Deus é materialista. /Ele não acredita/que eu existo”. Romano riu gostosamente, dizendo com o sotaque francês: “muito engraçado, muito engraçado”. A dimensão do humor e o riso largo também faziam parte do seu jeito de ser, acompanhando o vigoroso aperto de mão e os olhos vivos e curtidores, ao levantar a taça e fazer brindes, dizendo: salut!

Em 1964 Romano foi detido na Secretaria de Segurança, junto a militantes da ACO. Em 1977 respondeu a um processo de expulsão que teve repercussão nacional e internacional e terminou sendo arquivado. Contou com o firme apoio de D. Helder Câmara, que embora não tivesse as posições políticas da ACO, claramente de esquerda, socialista e comprometida “com todas as lutas e formas de luta” que os trabalhadores assumissem ou viessem a assumir nas suas entidades autônomas, respeitou a sua autonomia e lhe prestou solidariedade, sempre que as malhas repressivas a ameaçaram.

“Deixemos ao fermento o tempo necessário para penetrar a massa, e ao grão, o tempo de morrer e fazer brotar a planta com doçura”- escreveu o Padre Romano. Ele morreu em fevereiro de 1985, aos 72 anos de idade, atacado por insuficiência respiratória, e teve realizado o seu desejo de ser sepultado em terra brasileira.

Na missa de 7o dia, D. Helder disse: “Romano precisa ser continuado. Nós não podemos ficar só na saudade. A saudade verdadeira é aquela que nos impulsionará para não deixar que caia o esforço da classe operária.(...) Ao comemorarmos a memória do Padre Romano, nós, a Igreja do Cristo do Nordeste, como também a Igreja do Cristo do Brasil, assumimos novamente o compromisso de não abandonar a classe trabalhadora, de sofrer com ela o que for preciso. De nos alegrarmos com suas vitórias, mas, sobretudo, de estarmos juntos, unidos, irmãos, nas horas difíceis, nas lutas que não haverão de faltar.”

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

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