segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Frei Caneca e a Reforma Ortográfica

Marcelo Mário de Melo

Sou inteiramente favorável ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, concebido e conduzido por Antônio Houaiss e já assinado por três países: Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Com ele, ficariam sem acento as palavras assembléia, idéia, européia, enjôo, vôo. Seriam eliminados o trema e os acentos em lêem, dêem, pára (do verbo parar) pêlo (de pilosidade) pólo (Pólo Norte), apóio, jóia, heróico. Perdendo-se a oportunidade da sua pura e simples eliminação, a incidência do hífem seria reduzida, saindo de contra-regra, extra-escolar, anti-semita e anti-religioso, e mantendo-se em micro-ondas e arqui-inimigo. O alfabeto seria acrescido das letras k, w e y. Serei sempre favorável ao máximo de mudanças em tudo, desde que elas, como é o caso, não sejam movidas por puro modismo ou capricho de burocrata.

As reformas ortográficas anteriores, de 1943, 1958 e 1971, foram inquestionavelmente positivas, eliminando arcaísmos inaceitáveis, aproximando a regra gramatical do uso corrente, facilitando o manejo da língua escrita e o intercâmbio gráfico-editorial entre os países de língua portuguesa. Só para lembrar, em 1943 ficamos livres quase completamente do h mudo e de grafias como pharmácia, óptimo, prompto, ahí. E só isto já pode ser considerado uma grande conquista. Em 1958, no bojo da Nova Nomenclatura Gramatical Brasileira, o número das categorias gramaticais passou de oito para dez, incluindo-se como tais o numeral e o artigo, e foi estabelecido que só tínhamos três conjugações de verbo, sendo o verbo pôr, o arcaico verbo poer (juntamente com os seus derivados), considerado uma anomalia da segunda conjugação.Também passamos a poder escrever oxente, pela primeira vez, na história do Brasil, depois que os meninos de muitas gerações se cansaram de levar carão das professoras para pronunciarem “oh, gente!”, no mais estrito decalque do português de Portugal. E foram aportuguesadas várias palavras, a exemplo de gol e futebol, que antes tínhamos de escrever em inglês e aspeado, “goal” e “foot-ball”. O sistema de acentuação também foi mexido. As palavras oxítonas terminadas em i e em u (cururu, oiti) deixaram de ser acentuadas, com exceção para quando formassem hiato em sílaba tônica (Andaraí, Cucaú). Em 1971 tivemos a retirada do acento grave na subtônica (pé/pèzinho; ótima/òtimamente) e uma série de acentos circunflexos diferenciais, com exceção para pôde/pode, pôr/por, pêlo/pelo. A ausência de exceção para fôrma e forma ainda é uma boa fonte de confusão.

Posto isto, quero salientar que todas essas mudanças propostas partem de uma matriz moderada, diferentemente das indicações formuladas por Frei Caneca na gramática que escreveu numa prisão baiana, nos quatro anos em que esteve cumprindo pena, depois da derrota da Revolução Pernambucana de 1817. Nos inícios do século 19, o frade levava para os tratos da língua o mesmo espírito radical e transformador que imaginava para a vida social, sobre a qual dizia: “só há um partido que é o da liberdade civil e da felicidade da pátria, e tudo que não for isto há de ser repulsado a ferro e fogo.” Quanto à gramática ele denunciava: “O alfabeto português é muito imperfeito, visto que para formar umas sílabas, tem letras demais, e para formar outras, faltam-lhe letras (...) a letra c com o som de k ou de q; a letra g com o som de j; a letra s com o som de z; as letras ch com o som de q ou x... Era desnecessário colocar uma vírgula abaixo de um c para conservar o som de s: ça, ço, çu e pronunciarmos sa, so, su”

Caneca era contra uma mesma letra representar diferentes sons, como o x, que soa xê em xarope, z em exame e ks em fixo. Ou o g e o j , superpondo-se em ginásio e jia. Defendia para cada letra um som distinto. Seguindo este princípio, escreveríamos xave, ezame e fiquiso (ou fiqso). Naquele tempo ele já combatia o h mudo e as letras mudas em geral, que na sua maioria só saíram de cena em 1943. Mas ainda temos o h mudo em haver e hora, que bem poderiam ser grafados aver e ora. Na linha de Caneca, teríamos que eliminar os paralelismos e as superposições entre ss, c e ç, todos os três representando o fonema cê, como em céu, isso e peço. Portanto, ou céu, ico e peco, ou çéu, iço e peço, ou sseu, isso e pesso. E também seria necessário dar um jeito no fonema kê, representado, ora pelo c (peco), ora pelo q (quero). Frei Caneca também de manifestou contra a consoante dobrada. E propôs a eliminação do u não pronunciado, em palavras como guerra, guia, quente, franquia, que poderiam ser, simplesmente, gerra, gia, qente e franqia Isto, estabelecendo-se previamente, no espírito de Caneca, a exclusividade do j para o fonema jê e do g para o fonema guê.

Tomar impulso a partir das propostas de Frei Caneca seria muito bom para a língua portuguesa. Mas como isto ainda é tão avançado e radical como o direito de comer três vezes por dia com sobremesas e lanches, vamos garantir agora um passo à frente mais moderado, tirando “do papel para a vida”, como dizia D. Hélder Câmara, o Acordo Ortográfico em que Houaiss tanto se empenhou. O fundamental é que haja simplificação para o povo e ampliação do denominador comum entre os diversos países de língua portuguesa, destacando-se aí as vantagens nos andamentos da palavra impressa.

Marcelo Mário de Melo é jornalista


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