quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A Ideologia Vai Às Urnas

Jornal do Commercio, domingo, 6/08/00

RUMO AO VOTO
Ex-presos políticos disputam mandatos em campos opostos
Marcelo insiste no discurso ideológico, afastado por Chico.

Noite de 10 de novembro de 1989, Berlim, Alemanha. Pedra a pedra, o muro que durante mais de 40 anos dividiu o mundo foi sendo destruído e, com ele, ficou para trás um passado de cruéis lutas por ideais, responsáveis por milhões de baixas nos dois lados. Entretanto, o fim do comunismo, sepultado de vez com a queda da união soviética, em 91, pode até ter acabado, oficialmente, com a “oposição” no globo terrestre, mas não conseguiu apagar as marcas deixadas nos seus combates.

Na última eleição de um século profundamente marcado por guerras, revoluções e grandes embates ideológicos, vários candidatos fazem questão de mostrar que carregam no currículo uma historia de lutas em defesa de causas que moveram gerações. Alguns passaram anos e anos presos. Outros quase morreram por ela.

No Brasil, eles são, em sua maioria, a juventude da década de 60. Gente que cresceu inspirada na rebeldia e passou os melhores anos da sua vida tentando derrubar um regime, um sistema inteiro, em busca de liberdade e justiça social.

Com o muro no chão e o mundo passando a ser mão única, antigos revolucionários depuseram as armas e, “em Roma, resolveram andar como os romanos”, apesar de garantir que não abandonaram seus ideais. Mudaram apenas a forma de lutar. Outros, no entanto, se negam a aceitar a nova ordem e condenam a atitude dos ex-companheiros, fazendo críticas suas alianças com antigos inimigos.

É nessas condições que dois importantes militantes do Estado na luta contra a ditadura militar vão concorrer á câmara Municipal do Recife. De um lado, Francisco de Assis (PMDB), ex-secretário municipal de Políticas Sociais, um dos favoritos dentro da aliança PMDB/PFL. De outro, o jornalista Marcelo Mario de Melo, companheiro de Chico na época do partido comunista Brasileiro Revolucionário 9PCBR), dissidência criada no pcb por aqueles que defendiam a luta armada e hoje, candidato pelo PT.

Para Chico, toda a ação do passado estava dentro “de um contexto histórico”. Éramos cego para o que acontecia no bloco comunista, com Ceaucesco e Stalin, Poe exemplo. Atrocidades como as que eles cometiam, para nós só eram possíveis com Pinochet, analisa. Marcelo enxerga por outro ângulo. “Essa história de modernização seria a mesma coisa do DOI-Codi pegar a gente no DOPS e deixar de bater com pau para nos dar choque elétrico. O combate á exclusão social continua. Os excluídos de hoje são escravos reciclados e a classe dominante tem mentalidade escravocrata”.

O primeiro diz que não quer “ direita ou esquerda. Prefere ir em frente”. O segundo adverte que “ultrapassar pela direita, jamais”. Mais do que aplicação das leis do trânsito nas eleições, o discurso ideológico dos dois, cada vez mais raro na política, será um dos diferenciais da campanha desse ano e o resultado pode servir para mostrar qual é o caminho que o eleitor Recifense realmente pretende seguir. Com o sinal verde para a corrida, os dois fazem questão de frisar que, apesar de estarem em faixas diferentes, mantêm a mesma amizade e esperam, quem sabe, cruzar juntos a reta de chegada.

Chico de Assis afirma que cresceu ao lado de ex-adversários

Foram nove anos e meio atrás das grades da antiga casa de detenção, hoje casa da cultura, e da penitenciaria Barreto Campelo. Mas Francisco de Assis (PMDB) não se arrepende do passado. Ele entrou na política em 1962, embalado pela agitação provocada pela primeira eleição de Miguel Arraes ao governo do Estado. Integrante de juventude comunista do PCB, Chico foi aluno do colégio Estadual Pernambucano, onde sofreu uma grande influência dos amigos.

Com o golpe militar de 1964, ele partiu para a clandestinidade e, no dilema entre solução pacífica ou via armada, optou pelo segundo caminho e se filiou ao PCBA revolucionário, dissidência do PCB. Em 1967, caiu pela primeira vez nas mãos nas mãos da polícia, mais foi em 1970 que sua militância teve fim. Agarrado pelo Estado, de quem só conseguiu se soltar em 1979, graças á anistia, Chico de Assis hoje considera muitas das causas pelas quais lutou como “delírios”.

Quando preso, ele só não levou choque elétrico. No entanto, deixou as mágoas para trás e, anos mais tarde , integrou o grupo de militantes da esquerda que se aliaram a ex-adversários, sendo secretário de Políticas Sociais do prefeito Roberto Magalhães (PFL) por mais de três anos. “Hoje faço muito mais pelos meus objetivos do que no ano passado. Estou preocupado com a consolidação da democracia, com ética e participação. E estou muito a cavalheiro para defender Magalhães, que fez muito mais nessa área que alguns governos de esquerda, como o de Miguel Arraes. As questões ideológicas não orientam mais as alianças, afirma ele, cujo lema é “nem à esquerda, nem à direita. Em frente sempre, com ética e participação pela vitória de cidadania”.

Marcelo não aceita integrar alianças com rivais da direita

Marcelo Mario de Melo (PT) também foi do colégio Estadual Pernambucano, mas algumas turmas antes de Francisco de Assis. Aos 17 anos, assinou a ficha de filiação do PCB e começou a participar ativamente do movimento sindical, prestando solidariedade na Cuba em várias manifestações e integrando a campanha de legalidade, pela posse de João Goulart.

Sempre atuando na publicação de jornais alternativos, ele estava na passeata realizada e 1 de Abril de 1964, na avenida Dantas Barreto, contra o regime militar que se instalava, quando quatro pessoas foram mortas pelo exército. “A partir daí, fui para a ilegalidade”, conta ele, que assim como Chico de Assis, também migrou para o PCB Revolucionário. Em 1971, foi preso pela primeira vez e passou oito anos no xadrez, entre a casa de detenção e a Barreto Campelo. “Mas Chico passou um ano e mais e foi muito mais torturado”.

A principal crítica de Marcelo a seus antigos companheiros é de que, há duas décadas, a luta “não era apenas por liberdade política”. “O que acontece é que uma série de pessoas não tinha visão do social e a própria luta delas se esgotou com a anistia e a constituição de 88”. Hoje, ele acredita que é muito mais necessário “lutar pela esquerda do que antes”.

Não entende como Chico de Assis pode defender Roberto Magalhães, “o menos indicado para ser citado como exemplo de ética que pedia punição e rigor para os estudantes quando foi secretário de educação, durante a ditadura”.”Também não estou esquecido das férias que o mesmo Roberto Magalhães, arrogante, autoritário e histérico, deu ao major Ferreira, assassino de um procurador da república,” condena.

Marcelo entrevista Chico de Assis

Marcelo Melo - Como você se sente trabalhando ao lado de Roberto Magalhães, que como secretário de Educação, em 1968, perseguiu estudantes e, como governador, em 82, nomeou para a direção da Fesp o torturador Armando Samico , que, na condição de diretor do DOPS, em 1971, comandou a tortura e o assassinato do nosso companheiro Odijas Carvalho?

Chico de Assis - Sem nenhum constrangimento. O então governador Roberto Magalhães nomeou para reitor da Fesp um servidor público, professor da universidade, indicado por seus pares nas costumeiras listas preparadas em tais ocasiões. Embora verdadeiras, as denúncias que o envolviam com torturas e assassinatos estavam sendo feitas apenas por nós, os mais radicais e intransigentes adversários do seu governo. O governador não tinha como acatá-las. Minha posição sobre tortura e torturadores continua sendo a mesma de sempre: Combate sem tréguas. Só que hoje eu sei que nessa luta conto com a solidariedade do governador que primeiro aderiu á luta pelas diretas. Do deputado que presidiu a comissão contra os corruptos anões do orçamento geral da união. Do prefeito vitorioso Roberto Magalhães, de cujo secretário com muita honra participei.

Marcelo – Numa cidade tão violenta como o Recife, você acha que foi um bom exemplo para a população o prefeito Roberto Magalhães, ostentando arma na cintura e com porte ilegal, ter entrado na redação do Jornal do Commercio e ameaçado o pacífico e desarmado jornalista Orismar Rodrigues, em outubro do ano passado?

Chico – Este é um episódio absolutamente superado. O prefeito Roberto Magalhães já deu à sociedade Recifense as explicações necessárias para o seu gesto. O próprio jornalista envolvido numa demonstração de grandeza com ele já se reconciliou. Ponto final.

Marcelo – Você está satisfeito com o insignificante percentual do orçamento do município que é reservado ao programa prefeitura nos Bairros?

Chico – Satisfeitíssimo. Primeiro porque não é tão insignificante assim o percentual reservado. Segundo porque o orçamento participativo é apenas um dos instrumentos de participação. A ele se juntam o fórum do prezeis, o parceria nos morros e os conselhos municipais, entre os quais se destacam o da criança e do adolescente (Condica), que tive a honra de coordenar, e os seus correlatos conselhos tutelares. Não tenho medo de errar ao dizer que nisso tudo se investiu mais de 60% do que a administração tem para investir. Satisfeitíssimo, portanto. Não sei se você pode dizer o mesmo, por ter votado, apoiado e defendido o governo Arraes, que não desencadeou um só, umzinho apenas que fosse, mecanismo de participação.

Marcelo – Você acha que as velhas forças conservadoras representadas hoje na aliança PFL/PMDB mudaram de caráter e podem promover a justiça social no Brasil, em Pernambuco e no Recife? Dá pra tirar sangue de tapioca?

Chico - As mencionadas forças conservadoras me permitiram formar em governos orientados pela ética e participação. Aliás, este é o corte que hoje orienta minha vida política, em contraposição ao desgastado corte ideológico, que nos leva à mais desgastada ainda dicotomia entre esquerda e direita. Os dois governos que defendi e defendo são governos participativos e limpos. Mais uma vez, não sei se a experiência recente das forças de esquerda do nosso Estado permite que elas falem com essa mesma convicção.

Chico de Assis entrevista Marcelo

Chico de Assis – O prefeito Roberto Magalhães implantou o programa bolsa- escola considerando um dos mais bem sucedidos do país, além de ser cópia autêntica e assumida do implantado por Cristóvão Buarque em Brasília; quadruplicou o número de intervenções em barreiras através da parceria nos morros; manteve rigorosamente e acatou em sua ação nas áreas populares as recomendações vindas do orçamento participativo e do fórum do prezeis e realizou a eleição mais expressiva em toda a história da democracia participativa no Recife, mobilizando 27.200 recifenses, para renovação dos conselhos tutelares, pedra angular de uma efetiva e moderna política de proteção á criança e ao adolescente. Uma administração que age assim pode ser chamada de insensível ao social, centralizadora e prepotente?

Marcelo Melo – O processo de estruturação de representações como os conselhos tutelares emana da sociedade civil e não pode ser creditado ao prefeito. As intervenções nos morros se concretizaram pelo caráter paliativo. O bolsa-escola encaminhado por Cristóvão Buarque foi voltado para crianças em situação de risco ( meninos de rua ). O bolsa - escola em Recife foi voltado para os alunos da rede escolar municipal, voltando-se para a evasão escolar. Há uma diferença. As deliberações do orçamento participativo se deram sob uma reduzida fatia. O prefeito Roberto Magalhães revela a sua insensibilidade social ao figurar entre a ínfima minoria dos que são contrários ao alargamento da parte do orçamento municipal reservado à saúde. Sobre prepotência, que tal um prefeito entrar armando em redação de jornal e ameaçar jornalista?

Chico – A partir da constituição de 1988, foi-se construindo no país um verdadeiro sistema de participação social, composto pelos conselhos municipais e fóruns diversos (institucionais ou não ) , que orientam o executivo na implantação de suas políticas públicas. Em nossa cidade, esse sistema foi consolidado no governo Jarbas Vasconcelos, mantido e em alguns casos aprofundado no governo Roberto Magalhães. Você teria alguma modificação substancial a propor nesse modelo?

Marcelo – As forças conservadoras sempre procuram manipular e descaracterizar o processo de representação civil. As eleições do conselho da criança e do adolescente (Condica) eram feitas pelo processo mais simples e democrático da votação nominal, sendo escolhidos os mais votados. O secretário de políticas sociais e D. Jane Magalhães articularam a modificação do regulamento e instituíram a votação por chapa fechada, recusando até o critério proporcional, que daria direito a representação da minoria. Estas interferências é que precisam ser superadas, para que o processo democrático brasileiro avance.

Chico – O candidato do seu partido a prefeito afirmou, na recente tragédia que se abateu sobre o Recife, que o problema dos morros da cidade poderia ser resolvido em quatro anos. O candidato do PPS foi mais ou menos na mesma linha, dizendo que com pouco mais do que a prefeitura gastou em publicidade ( segundo ele, 10 milhões de reais), o problema estaria resolvido. Você não acha que se está escolhendo o caminho fácil (mas politicamente desastroso ) da leviandade e da demagogia?

Marcelo – Segundo o engenheiro Jaime Gusmão, não houve uma atenção à altura, quanto ao problema dos morros, tendo-se revelado uma piora, na administração de Roberto Magalhães. Acho que em quatro anos se pode avançar muito no enfrentamento da questão da segurança nos morros e encostas, trabalhando durante todo o ano, e não só emergencialmente.

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