segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Arredação Final

Marcelo Mário de Melo

Preparei toda a programação da minha futura Festa Funeral. Para quem não foi muito organizado durante a vida, pega bem dar uma compensada na preparação pós-morte. Sempre gostei de fazer festa de aniversário - uma grande oportunidade de reencontrar amigos e ganhar presentes. E rever amigos e ganhar presentes são duas coisas que deixam a gente com os olhos acesos e a cauda do coração balançando.

Há anos atrás já havia tomado esta providência, mas um vírus no computador apagou tudo. Retomo-a agora, influenciado pelo comparecimento a algumas cerimônias fúnebres. Neste ano de 2005, com 61 anos de idade, tenho a certeza de que ainda vou viver umas duas décadas e meia, ou três. Mas o fato de falar de morte atraiu uma atmosfera de morbidez. Estou me vendo no caixão, os parentes e amigos mais íntimos cumprindo com algum embaraço a programação que deixo pronta. E nessa visão já começo a sair do roteiro, pois deverei ser cremado e não haverá nenhum caixão em cena.

Disse que tenho a certeza de que vou ultrapassar os 80. Mas isto não é lá muito verdadeiro. Porque, sendo muito distraído, tenho também um medo-quase-certeza de que vou morrer de distração. Viajando nessa hipótese, fiz até o mote: Eu vou morrer distraído/olhando coisa bonita. O mote nasceu quando, um dia, ia atravessar a rua, avistei uma mulher bonita, desses tipos mulher-monumento, que levam os olhos a arrastar o pescoço. Quando arrastaram, meti a cabeça num orelhão. A mulher viu a cena e saiu rindo. Isto faz parte das minhas Histórias Ingloriosas.
Em momentos de distração, andando de bicicleta ou a pé, carros já deram freadas pesadas em cima de mim. Nos anos 1980 inventei de comprar uma moto e um dos meus amigos iniciou uma cruzada contrária entre os mais próximos, chegando até a falar com a minha mãe. “Num carro você perde um pára-lama; numa moto você perde uma perna”, foi seu convincente argumento final. Continuei pedalando e me habilitei assim a não morrer por moto. Pelo menos, sendo eu o motorista.

O fato é que sempre acho que posso morrer de distração. E, se for o caso, prefiro que seja olhando coisa bonita. O mote tem que ficar escrito na minha lápide. E novamente vou saindo da programação, porque vou ser cremado e não haverá lápide nenhuma. Mas há também a hipótese não descartável de morrer sem distração nenhuma e a curto prazo, vítima de algum assaltante ocasional e nada casual, nesses tempos de crescente marginalização pós-modernosa.
Outra coisa me preocupa. Se eu não morrer de distração nem de assalto, se não pegar uma dessas doenças tenebrosas, que fazem liquidação em curto prazo, e se chegar aos 99 anos pretendidos, a minha festa funeral poderá ser um grande fiasco por falta de público, pois muitos dos meus amigos mais chegados deverão ter sido deletados bem antes de mim. Uma amiga, dez anos mais nova do que eu, procura me tranqüilizar, dizendo que garante na festa uma representação expressiva de gatões e gatinhas de 89 anos. Bem, seja lá o que Deus quiser.

E por falar em Deus, esclareço que decidi deixar uma programação funeral amarrada, porque quero ter uma cerimônia fúnebre de ateu, sem nenhum componente religioso centralizando a festa. Mas é claro que os meus amigos religiosos, se quiserem, podem dar uma rezadinha, porque não sou um ateu rançoso e não vou fazer proibições e constranger ninguém na despedida final, sem mais a possibilidade de um posterior pedido de desculpas.

Quando adolescente, me impressionou muito uma carta fúnebre deixada pelo desembargador comunista Edmundo Jordão, de quem ganhei de presente uma bola de borracha, em Caruaru, no aniversário dos 7 ou 8 anos. Já morando no Recife, com 14 ou 15 anos, li num jornal a carta do Dr. Edmundo, dizendo assim: “renuncio a todas as cerimônias dos que nascem no seio da igreja”. Ele também determinou que o seu caixão ficasse fechado, sentenciando: “a morte tem o seu pudor”.

Sempre me incomodou, em mortes de ateus, as famílias providenciarem cerimônias religiosas, contrariando a descrença dos defuntos. Ora, a quem passou a vida como ateu, por que negar o direito a um ritual ateu depois de morto? Pensando nisto, decidi programar meu funeral, esperando que, além de ser cumprido à risca, seja muito animado e possa servir de referência a outros ateus no corredor da morte ou colhidos por ela.

Muitos só tomam conhecimento da morte de uma pessoa próxima, dias depois que ela ocorre. Outros, por alguma razão, não podem comparecer ao sepultamento, restando-lhes a missa de 7o dia. Considerando isto, programei para mim uma Festa Funeral de 7O Dia que, além de manter a sintonia com a tradição cristã predominante, terá um efeito de “repescagem” para os que faltarem ao primeiro evento.

Quando morrer, quero que o meu corpo seja imediatamente entregue à reciclagem para a extração do material reutilizável. Em seguida deverá seguir para a cremação. A festa final de despedida ocorrerá nas imediações do local em que serão lançadas as minhas cinzas. No Rio Capibaribe cumprirei a última função útil, como elemento fertilizante e comida de caranguejo. Aprofundando a linha mortuária do desembargador Edmundo Jordão, não haverá o tradicional velório, com o defunto encaixotado e exposto aos olhos públicos. Apenas uma caixinha com cinzas, ao lado de um buquê de rosas vermelhas, estará representando o morto, à espera do seu destino final.

Só desejo não morrer em época de chuva, porque programei uma festa ao ar livre. Talvez seja o caso de uma promessa pré-paga com São Pedro, para garantir o bom tempo.

Abraços, beijos, uma boa festa (aliás, duas boas festas) e até sempre!

Recife, 2005

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