segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Esquecimento Global

Marcelo Mário de Melo

O aquecimento global, bomba de efeito retardado contra as diversas manifestações da vida no planeta, é um tema importante a ser tratado. Mas convenhamos que a ele já é reservada uma cota elevada de discussões públicas e espaços na mídia.

O que não ocorre com o esquecimento global, igualmente pernicioso e desafiando às devidas considerações sobre as suas especificidades. Enquanto o aquecimento global, operando a longo prazo, é impessoal e não localizado nas instâncias da psique, o esquecimento global afeta diretamente a memória e a consciência das pessoas e das coletividades, sendo os seus efeitos menos perceptíveis. E aí está a diferença essencial entre os dois fenômenos. O primeiro se manifesta pelas suas evidências. O segundo, pelo gradativo e envolvente apagamento delas, quanto mais os seus efeitos negativos se aprofundam. Aí residem a complexidade e a dificuldade em desvendá-lo.

Para uma pessoa, uma comunidade ou um país, esquecer o seu passado significa comprometer os rumos do seu futuro. Os pontos cegos esquecidos são como nódulos cancerosos operando livres. A consciência do passado é fundamental. Não para cultuá-lo e defendê-lo irracionalmente, como um poço de perfeição a ser repetido item por item. Mas para entendê-lo e processá-lo seguindo uma linha seletiva de continuidade.

Considerando as extensões do umbigo, esquecemos que temos um corpo que exige cuidados. Esquecemos que vamos envelhecendo. Esquecemos que um dia vamos morrer e que poderemos morrer a qualquer instante, pelo mal súbito, o acidente de trânsito ou o bandido da esquina. Esquecemos de cultivar nossos afetos e, de repente, somos surpreendidos com o funeral de um amigo. Esquecemos de visitar os parentes. Esquecemos de olhar de lado e conviver mais com os familiares - dentro da nossa casa. Esquecemos de dar atenção aos outros Esquecemos que também merecemos atenção. Esquecemos de fazer elogios e carinhos. E como esquecemos de ouvir! Esquecemos do lazer e do repouso. Esquecemos, esquecemos, esquecemos, na pauta impositiva do sobreviver, do adquirir e do aparentar.

Na arena dos animais políticos, o esquecimento global também faz os seus estragos.

A direita faz esquecer por determinação e destino.

A esquerda esquece por desencanto e degenerescência.

Esquece que as raias dos projetos imediatistas e murados estão subterraneamente determinadas por condicionantes nacionais e internacionais. Esquece de uma coisa chamada processo histórico. Esquece que os interesses dominantes são interesses de classe, manipulando as cordas e pautando a mídia. Esquece que ocupar o governo não é tomar o poder. Esquece que governo não é sinônimo de sociedade. Esquece dos compromissos políticos de governantes e representantes. Esquece de discordar. Esquece de propor. Esquece de mobilizar. Esquece de organizar.Esquece dos sonhos de justiça. Esquece do sofrimento do povo. Esquece de remar contra a maré. Esquece de dar o exemplo. Esquece da sua identidade. Esquece do seu sal.

Diante das evidências, colocam-se à sociedade inservil o desafio da lucidez e a tarefa de enfrentar o esquecimento global nas suas repercussões individuais e coletivas. Para que as pessoas e o país se libertem das amarras da ousadia na moderação, cuja expressão maior é a mesmice melhorada. Que quebra as quinas e uniformiza os conceitos, tornando-os redondos, rolantes e iguais. Que reduz todos os corpos à condição líquido-pastosa, adaptável a qualquer recipiente.

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