domingo, 7 de setembro de 2008

1964: golpe também na poesia

Marcelo Mário de Melo

O golpe de 1964 não foi só antidemocrático, antipopular e antinacional: foi também antipoético. Na tarde do dia primeiro de abril vi tombar na passeata de protesto, atingido por tiros de mosquetão, o companheiro Jonas Barros, cantando o hino nacional e escudado na bandeira brasileira. Jovem militante comunista da base do Colégio Estadual de Pernambuco, Jonas escrevia poemas de muita sensibilidade e leveza. Também foi atingido pelos tiros Ivan Aguiar, comunista de Palmares e aprovado no vestibular para a Escola de Engenharia. Mais dois mortos, um homem e uma mulher, nunca foram identificados.

Os poetas Ângelo Monteiro e Albérgio Maia de Farias foram presos. Albérgio, com 16 anos, passou pelo comando do IV Exército, onde encontrou recolhido David Capistrano Filho, da mesma idade. No DOPS, dividiu cela com Ângelo. Depois de solto, um dia, Albérgio foi comigo à Galeria de Arte, localizada numa estrutura de cimento construída sobre o Rio Capibaribe, em frente aos Correios. Queria prestar uma homenagem a Jonas, habituê daquele espaço. Emocionado, deixou pregado numa das paredes um poema que começava assim: “Na galeria de arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade.”

Para comemorar a libertação de Newton Farias, irmão de Albérgio, que atuava junto ao Sindicato dos Bancários, foi marcada uma farra secreta nos fundos da venda do Velho Pires, no bairro da Soledade. Entre cervejas, canções e poemas, Rui Alencar sentenciou: “as noites de sábado dos poetas/alimentam a resistência dos patriotas.

Estudantes secundaristas de esquerda faziam o jornal O Secundarista, com boa tiragem e impresso em cores, idealizado e articulado por José Fortuna de Melo, meu irmão, o meu nome constando como secretário, e editado por Rômulo Lins, onde publicavam poemas Albérgio Maia de Farias, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Anamárcia Veinsenher, Luis Carlos Duarte, Rômulo Lins, Diógenes Caldas e outros. Também golpeado, o jornal não pôde mais ser editado e os seus responsáveis e colaboradores que não foram presos tiveram de se esconder da repressão. Naquele tempo, Albérgio e Marcus Accioly, ambos integrando bases secundaristas do PCB, produziam poemas engajados numa linha castroalvista

Conheci Ângelo Monteiro num Congresso estudantil em Pesqueira, em 1962. Hospedados na mesma casa, ele me convidou para formar o PCC – Partido Comunista Cristão. Eu, já integrado ao PCB desde 1961. Depois Ângelo incorporou-se às atividades políticas da esquerda e desenvolveu uma intensa militância estudantil, marcada pela declamação de poemas desse teor:“E os verdadeiros cristãos/de fé robusta e viril/ com o cano do seu fuzil/farão o sinal da cruz” .Também fazia longos discursos previamente decorados: “Como católico, ouço a voz de Sua Santidade o papa. Como revolucionário, ouço a voz de sua Santidade o povo.” Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra acompanhavam a esquerda nas disputas estudantis. Depois do golpe, Jaci editou e distribuiu no Colégio Estadual de Pernambuco um jornal mimeografado intitulado Letras.

Um subproduto poético publicado no Suplemente Literário do Diário de Pernambuco, em 1965, foi objeto de gozação de Stanislaw Ponte Preta na sua coluna na Última Hora do Rio. Era um longo texto do tenente-coronel Dácio Vassimom, chefe do estado maior do IV Exército, louvando a Cruzada Democrática Feminina com coisas assim: “pelas ruas do Recife desfilando/a corja comunista desacata/sem temer uma bala ou um sopapo/a lembrar o que foi Tejucupapo”. Nas citações que fez, Stanislaw não se referiu a versos: falou em pedaços.

De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Bareto Campelo, em Itamaracá. Perdi nos aparelhos clandestinos e nas fugas um volume datilografado com todos os meus textos. Em dois meses de trabalho reconstituí quase todos os poemas. A partir daí, passei a decorá-los.

Além de mim, escreviam poemas na prisão, Chico de Assis, Juliano Siqueira, Cláudio Gurgel, Chico Passeata, do Ceará, Severino Quirino, (o Poeta da Fome, de Caruaru), e Antônio Ricardo Braz, cirandeiro de Timbaúba. Recebi livros de Ângelo Monteiro e Luis Carlos Duarte, que ainda conservo. Minha obra completa de Castro Alves foi apreendida pelo major diretor da penitenciária como produto subversivo, junto ao Aprendiz de Crítica, de Joel Pontes, entre outras centenas de livros subtraídos dos presos políticos e revendidos em sebos. Contrabandeamos por partes o Poema Sujo, de Ferrreira Gullar.Quando o li, tive um impacto tão grande que subi um degrau na tabela do exercício físico que fazia,.

Virando a página, o Os Quatro Pés da Mesa Posta, publicado pelas Edições Pirata em 1980, foi uma amostra de 38 dos meus poemas carcerários.

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