domingo, 21 de setembro de 2008

Roliúde de Homero e Bibiu

Marcelo Mário de Melo

No seu romance Roliúde, picaresco, cinematográfico, Homero Fonseca deu vida a Severino Ramos Soares da Silva, Bibiu, “calculadamente nascido” em 1911, “mulherengo, enrolão, devasso, estróina, pobretão, raparigueiro, mentiroso e chachaceiro”, de quem se tem a última notícia com 85 anos de idade, terminando de contar sua história no ano de 1996.

Bibiu assistia filmes e os contava em rodas que formava em ruas, feiras, bodegas, puteiros e casas de família. No livro aparecem as suas narrativas de Em Busca do Ouro, Casablanca, E o Vento Levou, O Ébrio, Sansão e Dalila, King Kong, A Dama das Camélias, No Tempo das Diligências, Tarzan, o Rei da Selva e Aviso aos Navegantes. Sendo essa sua atividade principal, ele também foi locutor de parque de diversões e de circo, homem da cobra e mago de tarô com o nome de Bibiukoviski.

O personagem viveu o encantamento inicial da sétima arte e das linhas férreas, ficando aí demarcado o tempo das suas presepadas e o campo das suas preferências, pois para ele as três coisas melhores do mundo eram mulher cinema e trem. Bibiu é habitante do interior de Pernambuco e a narrativa é marcada por um saboroso saltitar de palavras matutas, muitas delas caídas em desuso. Mas no romance de Homero não aparecem as marcas chapadas do cangaceirismo, do bucolismo e do passadismo. Ele se situa na atmosfera típica dos interioranos que convivem nos centros das cidades, os pracianos, ou os suburbanos das capitais. Os cenários comuns são a feira, o trem, a bodega, a praia, o cais do porto, a igreja, o fiscal, a polícia, o quartel, o puteiro, a família. Afirmando as inclinações cosmopolitas, as andanças de Bibiu incluem episódios que se desenvolvem no Recife e em São Paulo, onde se torna torcedor do Coríntians e amigo de um comunista corintiano que termina preso, torturado e desaparecido.

A trajetória de Bibiu é uma seqüência de trapolinagens e presepadas com tintas de cordel, circo, cameloagem, programa de rádio e chanchada, envolvendo as punhetagens e os sarros de adolescente, o serviço militar, a galinhagem de adulto, o casamento, a traição, a cornice, a carolice, a mexericagem, a vingança de corno brabo e algumas acontecências da política, como a revolução de 1930, o Estado Novo, Getúlio Vargas, o levante de 1935, o segunda guerra mundial, a presença norte-americana em Pernambuco e o impacto da coca-cola, bebida predileta do padre da Igreja de Santo Antônio da Consagração, que a usava na missa em lugar do vinho e só foi descoberto por causa dos arrotos na hora do sermão.

O filósofo Bibiu navega nas vielas onde vive “o povinho temente a Deus e ao Governo”, de onde recolhe os elementos da sua filosofia, que vai destilando ao longo da história. E vão aqui algumas pérolas:

Sobre o ofício de viver: “uma desgraça de condição humana...iguala tudo: branco e preto, moço e velho, principal e pequeno”; o diabo é sacana: cutuca a gente e depois desaparece, rindo um riso malino da nossa aflição; “na hora do perigo, santa e puta é tudo igual”; depois do Bem vem sempre o Mal e depois do Mal o bem, feito roda-gigante; por mais ruins que estejam as coisas, sempre podem piorar; com governo, polícia e mulher baixinha não se brinca; guerra é guerra, e é onde a gente morre não se enterra;

Sobre amor e mulher: as mulheres são cheias de artimanhas, muitas vezes parecem querer ir pro norte quando querem ir pro sul; fico mais balançado vendo uma nesga de coxa do que quando me deparo na praia com aquela danação de mulher quase nua, mostrando as femeíces para todo mundo ver. Bom mesmo é a gente ver um pedacinho e desenhar o resto na cabeça”; peguei a calcinha, atochei no nariz e respirei fundo. Aquele cheirinho meio salgado, meio azedo, meio quente, meio morno, acendeu a minha venta como se eu tivesse tomado um porre de lança-perfume Rodouro.

Sobre cornos e cornice: Essa igreja aí, seu Bibiu, é a maior fábrica de corno que eu conheço; se isso não for chifre em pensamento, pelo menos é perigo de traição; esse negócio de chifre entroncha qualquer um, me desculpem a sinceridade; nem todo mundo que bebe é corno, mas todo chifrudo enche a caveira pra agüentar o rojão; são demais os perigos dessa vida pra quem se mete com mulher de corno brabo;

fazia uns carinhos experientes
a moda agora é chamar frango de homosexual; um dinossauro, um bicho horroroso do tempo antigo, desses que Noé não embarcou na sua barca; um usineiro que gastava com as putas numa noite o que não pagava de salário por mês de labuta dos seus trabalhadores;ora, Bibiu, bunda não tem pátria;

Veja só como tem gente ignorante nesse mundo, querendo estragar uma boa história por detalhezinho de nada;

a senhora não está nem no antes nem no depois, mas no tempo doe exatamente;

conheci pessoas principais, gente importante e intelectual;

Macaco velho e escolado, Bibiu não iria vacilar na hora que decidiu escrever a sua história. Seguindo a sua filosofia, foi atrás de Homero Fonseca, pois sabia que ele tinha “olho treinado, paciência e interesse”. Em Roliúde se lê que “o grande escritor de folheto, horoscopista e almanquista Jota Ferreira de Lima, dizia que o povo tem necessidade de história como tem necessidade de comer e beber”. A história de Bibiu/Homero é mais do que necessária e faz muito bem comê-la e bebê-la.

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