domingo, 21 de setembro de 2008

O Solidário Dom Penido

Marcelo Mário de Melo

Quando cheguei na Casa de Detenção do Recife, em junho de 1971, vindo da fase de interrogatórios no Dops e em quartéis, num dia de visita aos presos políticos conheci D. Penido, então abade do mosteiro de São Bento. Na maioria das vezes ele estava ao lado da freira Margarida Serpa (Peggy), superiora da ordem do Sacré Coeur e integrante da equipe de D. Hélder. Dom Penido também ia ao presídio feminino do Bom Pastor e a quartéis onde se encontravam outros companheiros.Durante todo o período da ditadura militar os presos políticos de Pernambuco contaram com a sua solidariedade em diversos níveis:a ajuda material, a divulgação de documentos de denúncia, a articulação junto à CNBB e às entidades comprometidas com a defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Já em liberdade, em 1980, mantive contato com o abade em busca de apoio para um fugitivo de ditadura latino-americana. Como sempre, a sua solidariedade se manifestou.

Nas longas conversas com D. Penido, às vezes sabíamos de detalhes de articulações e contatos feitos por integrantes da CNBB, no trabalho penoso de tentar localizar um preso ou descobrir as teias que pudessem revelar o itinerário de algum desaparecido. Sem ser de esquerda e contrário às ações armadas, ele assumia uma atitude antiditatorial nítida e mostrava interesse em conversar e aprofundar discussões com aqueles que visitava, na sua maioria, marcados pelo marxismo-leninismo e defensores da resposta violenta à ditadura. Era visível, da sua parte, uma atitude de abertura e entendimento. De perquirição, para falarmos em consonância com a sua condição de estudioso e erudito.

Dom Penido levava notícias de um presídio a outro e, às vezes, trazia alguma correspondência. Numa dessas ocasiões, foi portador de uma colagem de Cláudio Gurgel, que se encontrava recolhido com Mário Miranda no Esquadrão de Cavalaria, no Bonji. Quando passou pela revista a que eram submetidos os visitantes na portaria da Casa de Detenção, a colagem foi exposta pelo policial e ele se surpreendeu com o seu conteúdo, reclamando depois ao remetente: “Mas Cláudio, mandar uma coisa daquelas!”. Tratava-se de uma peça composta por letras aplicadas sobre a foto de uma bela bunda de mulher, formando o poemeto:

“Ateus, ateus
amigos meus
este poema
é de Deus”.

Na visita do Natal de 1971, D. Penido foi chegando sorridente, na área da visita, com uma garrafa de vinho na mão, nos oferecendo. Surpreendidos, perguntamos como tinha conseguido a façanha. ‘Foi muito fácil - esclareceu. Eu trouxe duas garrafas, e quando abri a bolsa, tirei logo uma e disse ao guarda: esta é a sua”.

Na Penitenciária Professor Barreto Campelo, para onde os presos políticos foram transferidos em outubro de 1973, com a desativação da Casa de Detenção, o abade também se fez presente. Dessa vez, tendo de passar pelo ritual a que eram submetidos os visitantes de todos os sexos e idades: ficar completamente despido. Coisa que ele tirou de letra, dizendo que, quando era rapaz, fazia natação num clube no Rio de Janeiro e, no banheiro coletivo, os rapazes tomavam banho e circulavam nus, com toda naturalidade.

O contato mais próximo com as prisões, as torturas, a perseguição política e o sofrimento dos familiares dos perseguidos, marcaram profundamente D. Penido. Já em liberdade, numa fala sua em cerimônia de casamento, ouvi-o ressaltar este aspecto, adiantando que usava (ou possuía) uma medalha com a inscrição: eu estive na prisão.
Falando explicado e elegantemente - a voz parecida com a de Jô Soares - nas palavras e nos gestos precisos, D. Penido transmitia uma firmeza refinada. Na sua vida ele somou para o alargamento das vias democráticas, da solidariedade e do ecumenismo: quando na relação entre as pessoas são colocados, em primeiro plano, os lençóis d’água comuns à condição humana e ao cosmos, e não os muros e as fronteiras erguidos na superfície.

Parafraseando o poeta Drummond, faço do fundo do coração esta última e retardada homenagem ao homem de boa vontade. Solidário Abade Dom Basílio Penido Burnier: eu, ateu, faço o sinal da cruz em sua consideração.

Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE

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