domingo, 21 de setembro de 2008

Anselmo e a Democracia

Marcelo Mário de Melo

O Caso Anselmo coloca para os democratas brasileiros questões mais importantes do que a polêmica secundária em torno da concessão dos seus direitos de anistiado, assegurados pela sua simples condição de militar cassado e expulso das forças armadas.

Levanta-se a hipótese de que Anselmo já era um agente infiltrado da direita no movimento popular, desde 1964. Mas também é possível um processo de degenerescência posterior, que resultou na sua atuação como traidor a serviço dos organismos de repressão da ditadura, gerando prisões e mortes de dezenas de militantes, inclusive, da sua própria companheira, com um filho seu na barriga. Também esta uma questão secundária.

O caráter repelente de Anselmo nesse segundo momento da sua vida é acentuado pelo cinismo das suas declarações atuais, tentando justificar o injustificável. Ele se coloca em julgamento político-ideológico e ético ante as forças de esquerda, a opinião pública e a história. O que também é uma questão secundária.

E vamos ao fundamental.

O Caso Anselmo coloca em questão a famigerada “Anistia Recíproca” brasileira, absolvendo sem julgamento os mandantes, praticantes e auxiliares do sistema de torturas, civis e militares, que continuam impunes e encastelados nas instituições republicadas, notadamente nas forças armadas, falando em democracia e cidadania. Isto é o que alimenta a sem-cerimônia de Anselmo.

Em outros países latinoamericanos que passaram por ditaduras, como o Chile e a Argentina, os generais torturadores ainda são colocados no banco dos réus, depois de revogada a legislação que os blindava. É esta diferença que permite, no Brasil, assistirmos Anselmo desfiar impunemente o rol dos seus crimes.

O fato é que, desde a queda do império, nunca depuramos a nossa república da tutela militar, eterna fonte de golpes-de-estado e intimidação sobre o poder civil. Veja-se, por exemplo, a autonomia dos comandos militares na reiterada comemoração, ainda hoje, do golpe de 1964, incensado nos quartéis como revolução libertadora. Lembrem-se da acintosa e ainda recente queima de arquivos de organismos militares e da não apuração das responsabilidades a respeito. Pensem na empedernida insistência em não abrir os arquivos secretos da repressão ditatorial. Considerem a manutenção, ainda hoje, da medida provisória de Fernando Henrique Cardoso que permite o adiamento sine die do acesso público a esses arquivos. Constatem a fragilidade do nosso ministério da Defesa.

Que se coloquem na pauta democrática a não conciliação com a tortura, a abertura dos arquivos da repressão ditatorial e o pleno controle do poder civil sobre os comandos militares.

É necessário no Brasil colocar a tortura como crime hediondo e quebrar a prévia isenção de culpa dos torturadores de todas as épocas. Sem isto, e agora falando em termos de presente e de futuro, estaremos avalizando a manutenção do sistema de torturas que hoje ainda vigora nas instâncias policiais e penitenciárias, além da violência policial generalizada, atingindo principalmente, como no passado, os pretos e os pobres do País, ou a maioria dos pobres, pretos e brancos.

Precisamos também enfrentar o corporativismo militar, o mais pernicioso entre todos, porque intimidatório e armado. E que possui historicamente um lastimável saldo negativo, cujas manchas de sangue não podem ser apagadas e é preciso que sejam reveladas. A reforma militar se coloca, portanto, na ordem do dia, devendo operar numa linha dupla. Por um lado, modernizando e fortalecendo as forças armadas, para que elas possam cumprir as suas funções de defesa das nossas fronteiras e das nossas instituições republicanas. Por outro lado, estabelecendo sem nenhuma margem de dúvida a obediência ao poder civil e a não ingerência dos comandos militares nos assuntos políticos.

Ante o debate suscitado pelo Caso Anselmo, os militantes de esquerda, principalmente aqueles que foram presos, torturados, e carregam depoimentos sobre presos políticos mortos e desaparecidos, têm a responsabilidade de manter a racionalidade política e a postura republicana, colocando em primeiro plano as questões que são fundamentais para que se construa, no Brasil, algo que mereça ser chamado de República Democrática.






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