segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Espaço do Humor


“Felizmente o homem está também dotado do sentido do
humor, cuja função, segundo concebo, é exercer a crítica
dos sonhos e pô-lo em contato com o mundo da realidade”

Lin Yutang

Marcelo Mário de Melo

O texto de humor continua ainda sendo visto com olhos enviesados pelas instâncias estatais, acadêmicas, universitárias e associativas que tratam da literatura. O mesmo valendo para as editorias de cultura e outros meandros da mídia.Nos concursos literários, não há vagas para ele. Os festivais de humor são exclusivos para charge, caricatura e cartum. Na área do jornalismo também não há espaços disponíveis, a não ser em situações ocasionais e sob a vestimenta da crônica. Mas nem sempre o texto de humor é uma crônica.E na maioria das vezes, não o é. O que têm a dizer sobre isto os titulares de academias de letras, os gestores culturais, os dirigentes de entidades de escritores e os diretores de cursos de letras?

Em toda a história de Pernambuco, registra-se a ocorrência de apenas dois concursos de texto de humor. O primeiro em 1986, no bojo do I Festival de Humor do Recife, promovido pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, que rompeu com a exclusividade para os artistas do traço e ampliou o leque para texto, teatro e vídeo. O concurso de textos de humor premiou os três primeiros colocados e publicou uma bruchura com uma seleção de 50 textos.

21 anos depois, no ano de 2007, o 5o Festival de Literatura – a Letra e a Voz, da Prefeitura do Recife, realizou outro concurso de texto de humor, sem premiação e com pouca divulgação. A iniciativa é positiva, mas precisa ser ampliada e consolidada, com a inserção do texto de humor entre as modalidades dos concursos literários promovidos anualmente pelo Conselho Municipal de Cultura e regidos por Lei. Sem isto, a ocorrência de concursos do gênero ficará ao sabor da vontade dos eventuais déspotas esclarecidos da cultura.E mesmo que sejam bem-vindos, eles e os seus frutos, convenhamos que impor uma periodicidade de 21 anos é exigir muita paciência – ou muito bom humor - do meio cultural. Na 6a Bienal Internacional do Livro Pernambucano/2007 a abertura para o humor também se manifestou, com a realização de uma mesa redonda tratando do tema Humor na Literatura, da qual participei como autor – ou portador da doença - ao lado de Diego Rafael, professor de literatura, detentor de dissertação de mestrado em torno do tema.

O escriba de humor passa por algumas dificuldades específicas. Em muitos casos o seu texto, ou é pequeno demais para figurar como um artigo, ou ultrapassa em muito os seus limites. E os espaços para divulgação são reduzidos. Afora este aspecto técnico, há o predomínio de uma visão primária acerca do texto de humor, muitas vezes identificado com a piada, o escracho, a simples comicidade ou a expressão pornô. Ignora-se a variada gama de matizes que vai da piada, à paródia e à sátira, assumindo feição própria ou despontando nos territórios da crônica, do conto, do teatro, da novela, do romance, da poesia.

A dimensão do humor na expressão humana ou na literatura foi estudada por Aristóteles, Hobes, Sthendal, Kant, Shopenhauer, Bergson, Freud, que lhe dedicou um livro inteiro, tratando do chiste, e retomou o tema noutros trabalhos. O humor está presente em obras referenciais da literatura universal, como D. Quixote, de Cervantes, Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, O Elogio da Loucura, de Erasmo, nas agrilhoadas de Bernard Shaw, na ironia corrosiva de Swift e nas setas envenenadas de Oscar Wilde. Sem falar em O Alienista, de Machado de Assis, marcado pelo arcabouço do conto/novela, e nas obras de Monteiro Lobato. Pelas mãos de autores como Aparycio Torelly/Barão de Itararé, Stanislaw Ponte Preta, Carlos Eduardo Novaes, Millor Fernandes e Luis Fernando Veríssimo, o texto de humor nacional assumiu a maioridade e a identidade própria, exigindo o seu reconhecimento como gênero literário autônomo.

A dimensão do humor é tão importante quanto a dimensão da poesia, para o processamento das vivências e a elaboração de respostas aos altos e baixos da vida, nos percursos individuais e nos jogos e conflitos que afloram na sociedade. Enquanto a poesia é a espiral-arco-íris de portas abertas e andantes, unindo o individual e o cósmico, o humor é o espelho invertido, a visão da inglória, o dedo na ferida, o olhar sem névoas, o retorno à terra, o pára-quedas de Ícaro.

Diante dos abismos e das perplexidades da condição humana na intimidade do travesseiro e nas vitrines da vida pública, o humor é um instrumento indispensável na orquestra, para que a sinfonia da vida se alargue, se complete e, principalmente, seja composta sem retoques. Às vezes o humor desafina, para quebrar o encantamento e o torpor.

O humor é o espelho crítico dizendo que o rei está nu, os santos pecam, os mitos mentem, os dogmas matam, as utopias tiranizam, os chefes abusam, o amor é vizinho do ódio, o ser amado é desalmado, as sombras são somente sombras e a vida é uma coisa concreta e não mística, uma mistura real de pus e seiva, flores e espinhos. O humor é o real tal qual viceja ou apodrece. O realismo do humor é o realismo pus e seiva.

Regularizar os concursos de textos de humor no Recife e no Estado seria trazer à luz essa vertente da expressão literária, iluminar anônimos, expor talentos e enriquecer a vida cultural na linha do Equador.Que a Prefeitura da capital e o governo do estado dêem esse passo pioneiro, que viria colocar Pernambuco numa condição de vanguarda na frente literária. Um passo essencialmente de esquerda. Partindo-se do conceito fotográfico de que à esquerda se tem mais abertura e mais luz.

Publicado na Continente Multicultural de abril-08

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