sábado, 13 de setembro de 2008

Política Cultural: foco e sistema

Nas discussões sobre política pública na área da cultura, constantemente, o foco tem sido colocado sobre as reivindicações dos segmentos da produção artístico-cultural, ficando sempre em segundo plano as necessidades dos “simples mortais”, os cidadãos. Quanto à gestão pública, predomina uma negociação imediatista nos balcões dos órgãos de gerência cultural, que se dividem entre os atendimentos de urgência, os programas setoriais e os ditames do calendário de eventos. Esta é a matriz que vem predominando nos tratos da política cultural no Brasil, independentemente da coloração política dos governantes. Mesmo ressaltando as intervenções positivas, trata-se de uma matriz deformada, retrógrada e perniciosa para o desenvolvimento cultural da república.

Ora, se nas discussões acerca de saúde, educação, defesa social etc, se colocam em primeiro plano as necessidades de atendimento à população, por que, em se tratando de cultura, deveria ser diferente? Um determinado crescimento da população em idade escolar exige uma quantidade correspondente de salas de aula que garantam o atendimento. Em saúde se agrupam as comunidades em distritos sanitários e existem unidades distintas de prestação de serviços, compondo uma rede: postos médicos, casas de parto, ambulatórios, prontos-socorros, centros cirúrgicos, laboratórios etc. Que se faça prevalecer, na área da cultura, uma lógica semelhante. É preciso colocar em pauta a discussão da cultura como um sistema a ser desenvolvido num planejamento a longo prazo. A seguir, algumas sugestões concretas, dentro do espírito de que é preciso levantar questões e baixar soluções, e considerando que o importante são os talhes dos detalhes.

- Compor o desenho de uma rede, definindo com precisão quais os equipamentos básicos de que necessita um município para assegurar os serviços culturais aos cidadãos e quantos e quais profissionais da cultura são necessários para geri-los. Romper com a tradição da corte portuguesa e programar uma rede que chegue aos distritos e aos subúrbios. Para tanto, inserir a presença de unidades móveis, como os ônibus-biblioteca e assemelhados. Na rede devem estar presentes os seguintes equipamentos: uma unidade multicultural com biblioteca e sala de multiuso, um arquivo público, um museu, um teatro. Deve ser estabelecido um planejamento de dez a quinze anos para implementar toda a rede no país.O que não impede que um governo de estado ou uma prefeitura tome a iniciativa e avance.

- Dar prioridade à montagem, em cada município, das unidades multiculturais com biblioteca, assegurando aos cidadãos o acesso gratuito a bens de cultura como livro, jornal, revista, CD, Vídeo, DVD, internet, além de espaço para discussões e apresentações artístico-culturais. Como forma emergencial, reservar nos equipamentos públicos de cultura, educação e outros, considerando os cidadãos do centro e da periferia, uma sala ou uma área, equipando-a como Núcleo de Inclusão Cultural, onde a população residente ou em passagem possa, pelo menos, ter acesso a jornais, revistas e gibis e, se possível, a CDs e vídeos/DVDs.

- É importante fugir da atração dos mega-projetos e das grandes obras de pedra e cal, todos com um alto custo de manutenção e, geralmente, restritos às capitais. As unidades multiculturais podem ser implementadas a partir da adaptação de edificações já existentes. Quando forem necessárias novas edificações, estabelecer módulos arquitetônicos com padrões específicos para municípios e distritos, segundo as nunca cumpridas indicações da Constituição Estadual de Pernambuco (1989) e do Plano Diretor do Recife (1990)

- Paralelamente e em integração com tudo isto, deverão ser equacionados os aspectos específicos relacionadas aos segmentos e aos profissionais da cultura, partes integrantes e indispensáveis do processo. Questões como concursos, festivais, programas de difusão e de formação – considerando os profissionais da cultura e as platéias. E que na programação cultural se estabeleçam pontes e viadutos entre cultura, educação, esportes, lazer, meio ambiente, turismo, economia.

Para romper com a atual matriz que orienta o planejamento e a gestão cultural, um bom começo é colocar o óbvio na prática: o governo federal agir nacionalmente, deixando de gerir equipamentos e realizar programas tipicamente estaduais e até municipais; o governo estadual atuar estadualmente, rompendo com a atuação predominante na capital, como se fosse uma segunda prefeitura; a prefeitura ser literalmente municipal, chegando aos distritos e aos subúrbios, e não se restringindo aos equipamentos e programas situados no centro.

Impõe-se um redesenho de obrigações entre a União, o Estado e o Município, incluindo a redistribuição dos equipamentos culturais, com vistas à composição de um Sistema Municipal de Cultura semelhante ao SUS. Quatro aspectos são fundamentais para a constituição do SMC: a definição da rede básica de serviços, a sua distribuição física entre as três instâncias da federação, o financiamento, a representação civil. Tópicos estes que exigem tratamentos específicos. O fato de não haver nos municípios, para ser redistribuído, um volume de equipamentos culturais equivalente ao existente na área de saúde, quando se implantou o SUS, só vem acentuar a necessidade de uma intervenção mais decidida e acelerada no sentido da municipalização cultural.

No seu Relatório Sobre a Cultura, em 1993, a Unesco conclama à redefinição das políticas culturais a partir do desenho de “novos mapas”. O documento político-cultural apresentado pelo PT nas últimas eleições nacionais, intitulado A Imaginação a Serviço do Brasil, cita largamente o aquele texto. O desafio é colocar a teoria na prática, pondo os dedos nas feridas e cortando pela raiz os velhos calos que têm marcado o compasso do planejamento e da gestão cultural no País, em todas as instâncias da federação. A ruptura não se dará à base de programas setoriais, públicos ou privados, por melhores que sejam ( e existem ótimos!). O buraco é muitíssimo mais em baixo. Como contribuição ao debate, Pernambuco e o Recife, em particular, contam com sólidos e avançados pontos de partida legais, inscritos (e esquecidos) nos capítulos de cultura da Constituição Estadual e da Lei Orgânica do Município, marcados por idéias de abrangência, sistema e rede. Conta, ainda, com um significativo acervo de experiências e documentos culturais que precisam ser considerados.

Apesar das omissões, das limitações e das impropriedades da ação governamental, a resistência de criadores, técnicos, pesquisadores, difusores, empreendedores, profissionais, amadores e aficcionados tem demonstrado a vitalidade cultural do País. Acredite-se que toda essa energia poderá ser canalizada num gigantesco e multifacetado mutirão nacional, envolvendo governos e sociedade civil, para mudar radicalmente a face cultural dos municípios brasileiros, marcados até agora por uma lastimável carência de equipamentos básicos de serviço público, segundo vêm demonstrando os censos decenais do IBGE. Assim como a fome e o raquitismo político, é urgente enfrentar a subnutrição cultural, rompendo com os velhos paradigmas e construindo o Sistema Municipal de Cultura. Para que o verbo se faça carne.

* Publicado na Massangana, revista da Fundação Joaquim Nabuco-MEC, Ed

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