sábado, 13 de setembro de 2008

Arte e Cultura na Escola: é necessário romper o cerco

Arte e Cultura na Escola: é necessário romper o cerco

"Para ajustar-se à renovação, é preciso sair do gueto escolar e
universitário e arejar, ao contato das diversas outras atividades
sociais, as funções atualmente monopolizadas pelo Ministério da
Educação".
(Roger Garaudy)

"Vincular a arte à cultura do povo e, ao mesmo tempo, ao que
de mais moderno existe no mundo contemporâneo".
(Ana Mae Barbosa)


Antes de falar sobre a linguagem poética em particular, vou tratar das possibilidades do desenvolvimento das artes no universo escolar. Para ressaltar a importância da arte na escola e na vida social, faço uma citação de Roger Garaudy, do livro Projeto Esperança:

"Não há educação mais revolucionária que a que incita o homem a se comportar perante o mundo, não como diante de um dado exterior e opaco, mas como o artista diante de uma obra de arte a criar”

Além dessa relevância da arte, tomada como referência de um processo educacional, Garaudy destaca seu papel como elemento de vanguarda, ruptura, abertura de novos horizontes, quando diz:

"As artes foram as que primeiro puseram de novo em causa os valores ocidentais, abrindo-se para a pintura japonesa já no último terço do século XIX, depois, no começo do século XX ,à estatuária e à música africana, ao teatro "no", à abstração muçulmana com Matisse e Paul Klee,
às danças litúrgicas da Índia"

Desenvolver o ensino de arte é um desafio. Para enfrentá-lo é necessário tratar a cultura na escola de uma maneira abrangente e, a partir daí, das questões mais especificamente relacionadas às linguagens artísticas. A questão da arte na escola não se esgota dentro da escola. Os professores não poderão fazer um trabalho extra-classe, se não contarem com uma rede de espaços culturais qualificados - bibliotecas, arquivos, museus etc -, indispensáveis como suportes do processo pedagógico. E aí nós já saímos do âmbito das secretarias de educação e entramos no terreno das secretarias e das fundações de cultura.

Fica claro que não é mais possível manter as preocupações do professorado limitadas à pauta das suas reivindicações específicas, à rede escolar e a um projeto pedagógico que a ela se restringe. Coloca-se para os professores o desafio e o encargo de ultrapassar os limites e tratar das questões de política cultural de uma maneira ampla.

Referindo-se ao universo escolar, Roger Garaudy, na obra citada, alarga o desafio:

"Uma verdadeira mudança não se pode realizar por uma renovação reformista dos meios: não basta ceder à ilusão econômica do crescimento quantitativo da escola, isto é, simplesmente aumentar orçamento da Educação Nacional para multiplicar o número de estabelecimentos, de equipamentos escolares e de professores; nem à ilusão política, fundada, também ela ,sobre critérios quantitativos, ou seja, prolongamento da escolaridade e democratização do acesso aos estudos; nem à ilusão pedagógica sobre a qualidade dos novos meios de ensino, tais como um uso mais generalizado da televisão ou do computador nas salas de aula"

Prossegue Garaudy:

"De tudo isso, nada é em si condenável, mas nada disso tudo constitui solução do problema atual; uma definição nova das finalidades da educação exige mudança radical do conteúdo, dos programas, das estruturas e do funcionamento da atividade vital da cultura"

Para avançar neste sentido apontado por Garaudy, entendo que a escola deve assegurar aos alunos o domínio elementar dos três códigos do conhecimento humano: o filosófico, o científico e o artístico. Nenhum deles é superior ao outro e os três são fundamentais para uma formação integral e crítica, que vá além do simples ler, escrever e contar.

E aqui não se pode fugir da política. O perfil da escola, por mais que se conquistem espaços no ordenamento jurídico, é determinado pela vontade da classe dominante. Os avanços maiores verificados nesse terreno, sempre são o resultado da insistência de pessoas e grupos que atuam em oposição ao sistema, remando contra a maré e acumulando pontos no jogo da resistência. As conquistas recentes obtidas na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação não fogem à regra. E a saída do papel para a prática só ocorrerá sob pressão.

Não nos enganemos. O interesse da classe dominante é no sentido de formar uma mão de obra capaz de rodar a sua máquina produtiva, acompanhando os avanços tecnológicos e os ditames da concorrência. Toda a modernidade ou pós-modernidade burguesa se limita a esse arco. Acerca dessa prevalência do interesse econômico, vejamos o que diz Marx nos seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, Livro III:

"A coletividade é apenas uma coletividade do trabalho e de igualdade do salário"

"Em lugar de todos os sentidos físicos e espirituais, apareceu assim a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do Ter"

A classe dominante delimita uma faixa restrita de sobrevivência para os despossuídos, negando-lhes as condições para uma vida com inteiridade. Eles passam a se organizar materialmente dentro dessa teia e a ela também se amarram subjetivamente, elaborando nesses limites as suas esperanças e os seus projetos de futuro. O modelo de vida amesquinhado se conjuga ao horizonte burguês e chega a determinar, inclusive, os modelos de militância oposicionista vindos da parte dos despossuidos. Vejam como o sindicalismo brasileiro ainda não se libertou de uma prática que se restringe ao aspecto econômico. É o império do "meu dissídio, minha data-base, minha categoria". Tenho um exemplo ilustrativo disso. A CUT de Pernambuco, quando se elaborava o Plano Diretor da capital, em 1990, tinha direito a representação na Comissão Popular, mas em quatorze meses de discussões, nunca ocupou a cadeira que lhe cabia. Deixou de opinar em questões como uso do espaço urbano, meio-ambiente, saúde, educação, cultura etc.

A partir de posturas desse tipo, levantei a tese de que, para se acertar o passo nas lutas sociais, é necessário substituir as classes e os militantes dominantes. Criei a figura do militante dominante, que atua de forma reiterativa na área do cerco e não apresenta alternativa para romper com ele. Mas há também os exemplos positivos. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no ano passado, nos deu uma bela demonstração de ruptura do cerco e saída por cima. Com elevada arrogância, o ministro dos Assuntos Fundiários, Raul Jungman, declarou: "não negocio sob pressão". Fechou-se às audiências e aos contatos formais com os sem-terra. A resposta do Movimento foi a marcha a Brasília, saindo do interior, passando por todas as capitais, divulgando na mídia as suas imagens e reivindicações. O sucesso da marcha levou o presidente Fernando Henrique a receber os sem-terra, que não tiveram nenhum interesse em manter contato com o Ministro Jungman."Já falamos com o Presidente", declarou à imprensa um dos seus líderes. Está colocado para os professores o desafio da ruptura no terreno da educação e da cultura, onde se inclui a arte.

Mas voltemos a Marx, na obra citada, quando ele fala do esmagamento/amoldamento humano na instância da produção:

"A simplificação da máquina, do trabalho, é utilizada para converter em operário o homem que ainda está se formando, o homem ainda não formado - a criança -, assim como o operário tornou-se uma criança totalmente abandonada. A máquina acomoda-se à fraqueza do homem para converter em máquina o homem fraco"

Com relação à criança, nós temos no Brasil a estatística tenebrosa do trabalho infantil em larga escala, ao lado de outra atividade econômica marginal: a prostituição infantil, face mais cinzenta do turismo sexual.

E agora somos obrigados a misturar escola e fome. Em artigo publicado no Diário de Pernambuco no dia 15 de julho passado, o representante da Unesco no Brasil, Jorge Werthein, se refere aos efeitos do programa Bolsa-Escola, ou Renda Mínima para a Educação, uma proposta petista iniciada em Brasília pelo governador Cristóvam Buarque. Ele diz:

"No campo educacional, observa-se drástica redução da evasão e da repetência escolar nos estratos sociais onde esses fenômenos apresentam maior incidência, melhoria substancial da aprendizagem e do aproveitamento escolar dos alunos bolsistas e incremento da sua motivação e das aspirações educacionais dos bolsistas no campo familiar, registra-se progressiva melhora das condições de vida e um aumento substancial da preocupação familiar pelo desempenho escolar dos filhos, revalorização do papel da mulher na família (no DF, ela é a única que pode retirar a bolsa-escola)".

O representante da Unesco, entre outras coisas, destaca também:

"o fortalecimento da cidadania, ao diminuir a exclusão social"

No caso, os resultados pedagógicos dependeram de uma intervenção de cunho político e econômico-social, reafirmando a necessidade de se tratar a educação na sua relação com as questões gerais da sociedade. Garaudy, na obra citada, diz que

“ ...se trata da pesquisa de novos fins para a sociedade global, da invenção de um novo projeto de civilização; o estímulo à criatividade e ao poder imaginativo da antecipação torna-se o objetivo essencial da educação".

Volto a insistir na necessidade de a escola promover o domínio básico, pelos alunos, dos três códigos fundamentais do conhecimento: o filosófico, o científico e o artístico. A esse respeito, tive uma experiência recente, muito interessante. Convidado pelo Sesi de Caruaru, estive com uma turma de professores de várias cidades, que vivenciavam algumas oficinas. Apresentei como proposta de trabalho que eles se dividissem em três grupos: o dos filósofos, o dos cientistas e o dos artistas, sendo a flor o tema a abordar. No grupo dos cientistas deveriam existir um botânico e um economista.

Os filósofos trataram da flor relacionada aos ciclos da vida: a floração como nascimento, a flor como dado de celebração de aniversários e festas, ou assinalando a morte. No grupo dos cientistas houve a polêmica entre um botânico, preocupado em cultivar as flores para fabricação de remédios e chás, e um economista sem nenhuma sensibilidade ecológica, vendo a flor, apenas, enquanto objeto de venda nos mercados interno e externo. Os artistas se apresentaram numa roda, com uma coreografia, desenhos, e um texto onde a flor simbolizava a aproximação e o afeto.

Os professores devem ter sentido a dificuldade de se expressar mais profundamente nos três códigos, porque foram alunos de uma escola que não os preparou para isso. Coloquei o desafio de que eles procurassem, por conta própria, os conhecimentos básicos, cumprindo um mínimo de bibliografia e de estudo, para que, por seu intermédio, os seus alunos tivessem o acesso que eles não tiveram, podendo mergulhar nas indagações filosóficas, ter uma postura científica diante da vida, expressar-se artisticamente e entender obras de arte.

Epicuro diz:

"Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois ninguém é jamais pouco maduro para conquistar a saúde. E ainda quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz"

Sócrates ressalta:

"Sei que não sei nada, mas procuro saber".

Francis Bacon arremata:

"Um coxo que segue um caminho ultrapassa aquele que corre sem caminho".

É importante que os alunos se sintam estimulados a mergulhar nas perguntas formuladas por Kant: “Que posso saber? Que devo fazer? Que podemos esperar?" Diante da flor, eles deveriam ter o domínio cognitivo para fazer as três leituras: a possibilidade de conhecê-la e o seu sentido (filosofia) ; as suas propriedades (ciência), os seus significados simbólicos (arte).

Agora, vamos à poesia.

Ferreira Gullar caracteriza num poema do livro A Luta Corporal, a essência da linguagem poética, e acredito que da linguagem artística em geral, quando diz:

"As rosas que eu colho
não são essas, frementes
na iluminação da manhã;
são, se as colho, as dum jardim contrário,
nascido desses
vossos, de sua terrosa
raíz, mas crescido inverso
como a imagem nágua"(...)

Fica aí muito clara a diferença entre a linguagem prosaica e a linguagem poética - uma questão que preocupa muito os poetas. Todo poeta elabora suas teorias sobre o assunto. Eu estabeleci as seguintes distinções: prosa é água, prosa poética é refresco, poema é suco; prosa é andar, prosa poética é desfilar, poema é dançar; prosa é a fruta, prosa poética é a vitamina, poema é a torta; prosa é a lâmpada, prosa poética é o refletor, poema é o farol. Restou a síntese: prosa anda água fruta lâmpada; prosa poética desfila refresco vitamina refletor; poema suco dança torta farol.

Em 1985 inventei o Verbo Flor:

"Se eu flor.
Se tu flores.
Se ele flor.
Se nós flormos.
Se vós flordes.
Se eles florem.

E se não flores assim
para mim
plantarei um cacto
no meu jardim".

Na minha produção poética tenho me preocupado com a AIDS e com a fome, e no final vou dizer textos relacionados a estes.[Ver neste Blog, em Poemas: Apresentação da Gorda Fome e Proposta Concreta para Tempo de AIDS] Vou também fazer uma homenagem a Solano Trindade, dizendo dois dos seus poemas. Solano foi um poeta pernambucano, negro, que morreu em 1966 e, se estivesse vivo, faria 90 anos no próximo dia 24 de julho de 1998. Ele saiu de Pernambuco e foi para o Rio, onde desenvolveu experiências de teatro na periferia e em entidades sindicais. Foi militante socialista e combateu o racismo dentro de uma visão antiburguesa e classista, sem incorrer no racismo negro nem no liberalismo amulatado.

Com relação à luta por arte e cultura na escola, quero encerrar citando Marx e Cristo:

"Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras, trata-se agora de transformá-lo"

"Vós sois o sal da terra, e se vós vos tornardes insípidos, com que a terra haverá de ser salgada?"

* Festival de Inverno de Garanhuns, 19 de julho de 1998.
Fala na abertura das Oficinas Pedagógicas


F. DA P.
(Solano Trindade)

Amor
um dia farei um poema
como tu queres
dicionário ao lado
um livro de vocabulário
um tratado de métrica
um tratado de rimas
terei todo o cuidado
com os meus versos.

Não falarei de negros
de revolução
de nada
que fale do povo.
Serei totalmente apolítico
no versejar ...
Falarei contritamente de Deus
do presidente da República
como poderes absolutos do homem.

Neste dia amor
Serei um grande F. da P.

GRAVATA COLORIDA

(Solano Trindade)

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada ...

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